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Promotor investigado por suspeita de envolvimento com facção nega acusações, mas admite relações íntimas com presos monitorados

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Conduta do promotor de Justiça Tales Tranin está sendo apurada pelo MP-AC. Em julho do ano passado, promotor negociou rendição dos presos durante a rebelião no Presídio de Segurança Máxima Antônio Amaro. Defesa nega que promotor tenha envolvimento com ‘ilícitos’.

Promotor Tales Tranin negou as acusações durante coletiva nesta sexta-feira (13). Foto: Júnior Andrade/Rede Amazônica Acre

 

O promotor Tales Fonseca Tranin, investigado por um suposto envolvimento com uma facção criminosa, negou as acusações, mas admitiu, em coletiva de imprensa com seus advogados, ter tido encontros de natureza sexual com presos monitorados.

A manifestação da defesa ocorreu no final da tarde desta sexta-feira (13) no escritório dos defensores, em Rio Branco.

Na quinta-feira (12), o Ministério Público Estadual (MP-AC) foi autorizado pelo Tribunal de Justiça do Acre (TJ-AC) a instaurar um procedimento investigatório para apurar a conduta do promotor. Ao g1, o órgão não quis se manifestar e afirmou que o caso segue em segredo de justiça.

Tranin, que já está afastado do comando da 4ª Promotoria Criminal de Execução Penal e Fiscalização de Presídio, desde 20 de agosto é alvo de um processo administrativo do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Segundo Erick Venâncio, um dos advogados do promotor os encontros com presos do regime semiaberto tinham objetivo de natureza exclusiva sexual.

“Esses contatos se deram exclusivamente em sua residência e mediante pagamento. É importante que isso fique claro. Ele nunca teve qualquer outro tipo de contato com essas pessoas, seja de convívio, seja de amizade, seja de qualquer outra natureza. Muito menos envolvimento com organização criminosa e com a prática de um crime”, afirmou.

O advogado negou ainda que o promotor tenha se aproveitado de seu acesso ao Complexo Penitenciário de Rio Branco para ter encontros com detentos.

“É absolutamente falso, é mentiroso que ele tenha tido contato sexual durante as inspeções. Isso não consta sequer como conjectura no processo administrativo”, afirma.

Atuação em processos

A defesa de Tranin negou ainda que o promotor tenha usado de sua posição para interferir em processos de apenados com quem ele tenha tido encontros sexuais.

“Os processos de execução dessas pessoas com as quais ele teve contato, exclusivamente fora do presídio, nos quais ele atuou sempre se deram de forma absolutamente técnica. Dentro da opinião técnica do Ministério Público”, disse.

Uso de veículo em tentativa de roubo

A defesa comentou ainda sobre o boletim de ocorrência que teria dado início a investigação e aponta que o carro dele foi usado em uma tentativa de roubo ocorrido na Rua Rio de Janeiro em fevereiro de 2023.

Na versão dos advogados de Tranin, houve um mal entendido que já teria sido esclarecido no processo administrativo.

O promotor teria ido buscar uma pessoa em um ponto de encontro combinado. “Essa pessoa [com quem ele se encontraria] abordou um cidadão que estava numa galeria comercial pedindo emprestado um telefone celular emprestado”, afirma.

A pessoa que sofreu a abordagem teria se assustado com a aparência do solicitante e após o promotor buscar o homem com quem se encontraria, acionou a polícia para denunciar a atitude suspeita. Dando o número da placa do promotor para que os policiais pudessem checar.

“Se transformou numa tentativa de assalto, coisa que nunca houve. A pessoa disse apenas que achou a pessoa em atitude suspeita”, alega.

A defesa negou ter emprestado o carro para a prática de crime e considerou criminosa o vazamento da investigação que corre em segredo de justiça.

“É uma situação extremamente difícil. Em decorrência de sua orientação sexual, de suas opções íntimas, porque todos nós temos direito de pagar por sexo, de buscar uma pessoa de outra forma, cada um tem a sua liberdade”, finalizou.

Boletim aponta dois homens com armas de fogo no carro do promotor

No boletim de ocorrência, é relatado que uma pessoa acionou a polícia informando que dois homens em um carro, em posse de arma de fogo, haviam tentado praticar um roubo na região. Os criminosos fugiram em direção ao cemitério na Rua São Paulo, bairro Mascarenhas de Morais.

No registro, os policiais comunicaram que em patrulhamento na rua Osvaldo Pires, bairro Conquista, foram informados sobre a tentativa de roubo ocorrida anteriormente na Galeria Bessa. Eles então decidiram verificar a placa informada pela vítima.

Ao averiguarem, foi constatado que o carro pertencia ao promotor Tales Fonseca Tranin. Os policiais foram até a residência de Tranin para apurar se estava tudo bem com ele, pois a suspeita era que ele poderia estar sendo mantido refém, já que seu carro estava sendo usado para cometer crimes.

Ao chegarem na residência, os policiais foram recebidos pelo promotor, e explicaram o que havia ocorrido. Tranin disse que estava tudo bem e que não tinha saído de casa no período da tarde, agradeceu a presença dos policiais, que continuaram o patrulhamento nas proximidades. No boletim não consta maiores esclarecimentos. O MP-AC não quis se manifestar e afirmou que o caso segue em segredo de justiça.

Promotor Tales Tranin já atuou em diversos casos de destaques no Acre — Foto: Reprodução/Rede Amazônica Acre

Promotor atuou em negociações na rebelião

Tranin é titular da 4ª Promotoria Criminal de Execução Penal e Fiscalização de Presídio desde 2019 e foi um dos principais negociadores com os presos durante a rebelião no Presídio de Segurança Máxima Antônio Amaro, em Rio Branco, em julho do ano passado.

Os próprios detentos exigiram a presença do promotor no presídio como uma das condições para que a rebelião acabasse. Após mais de 24 horas de negociação, os detentos se entregaram. A rebelião terminou com cinco presos mortos, sendo três deles decapitados.

A abertura do procedimento investigatório criminal contra Tranin foi solicitada pelo procurador-geral do MP, Danilo Lovisaro do Nascimento, por meio de uma petição. A autorização é obrigatório por conta do foro privilegiado de Tranin, que atual no Tribunal de Justiça.

Na petição, o procurador destacou que ‘foi instaurada Notícia de Fato a partir do compartilhamento de provas deferido pelo juiz de Direito da Vara de Delitos e Organizações Criminosas da Comarca de Rio Branco, objetivando a colheita de indícios da prática de possível crime envolvendo autoridade com prerrogativa de foro [Tales Tranin]’.

Promotor Tales Tranin atuou em negociações durante a rebelião no Presídio de Segurança Máxima Antônio Amaro. Foto: Arquivo pessoal

A decisão interlocutória foi publicada nessa quarta-feira (11) no Diário Oficial da Justiça. Na publicação, o desembargador Samoel Evangelista ressalta que a petição do MP argumenta na primeira página que o promotor teria favorecido, por meio de sua atuação profissional, criminosos. Os indícios surgiram durante a sindicância.

“Com isso, é imperioso aprofundar as investigações quanto à existência de prática de crime(s) por parte do Promotor de Justiça Tales Fonseca Tranin, em especial, os delitos de prevaricação e envolvimento com organização criminosa”.

Alvo de homofobia

O promotor Tales Tranin já foi alvo de vários ataques homofóbicos por conta de sua atuação no estado. Após a rebelião no ano passado, policial penal Waldimar de Araújo chamou o promotor de “afeminado” e criticou sua participação na mediação do conflito.

Em setembro do mesmo ano, o Ministério Público do Acre (MP-AC) apresentou uma denúncia contra o policial penal pelos crimes de racismo e ameaça.

Já em janeiro deste ano, o MP-AC pediu a abertura de um inquérito policial para apurar possível crime de homofobia contra o promotor de Justiça Tales Tranin em um comentário feito através de uma rede social.

Autor foi identificado e o MP-AC pediu que seja investigado possível crime de homofobia — Foto: Reprodução

O pedido, assinado pela promotora Patrícia Rego, coordenadora-geral do Centro de Atendimento à Vítima (CAV), identificou Pablo Felipe como autor dos ataques. O perfil não está mais disponível na rede social.

No final do mesmo mês, o Ministério Público Federal (MPF-AC) solicitou abertura de inquérito policial pela Polícia Federa para apuração dos fatos.

Já em junho, Tranin foi alvo de ameaça de morte. Desta vez, o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco), que atua de forma independente, investigou o policial civil João Rodolfo da Cunha Souza por ameaçar o promotor. Ele foi preso no dia 6 de junho e nega o crime.

Veja a nota da defesa na íntegra

“Tales Fonseca Tranin, promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Acre, vem por meio da sua defesa, por solicitação da reportagem, manifestar-se acerca de instauração de Procedimento Investigatório Criminal pelo Ministério Público do Estado do Acre, que teria o intuito de investigar a sua suposta participação em delitos de prevaricação e envolvimento com organização criminosa, noticiado por meio do Diário da Justiça do Estado do Acre de 11 de setembro do corrente ano.

Primeiramente, é fundamental destacar que apoia qualquer investigação que tenha o propósito de esclarecer dúvidas acerca de sua conduta enquanto agente público, desde que conduzida com imparcialidade, sem prejulgamentos e baseada em fatos concretos.

Contudo, é inaceitável que uma investigação que se diz preliminar seja exposta ao público antes mesmo do Investigado dela ter conhecimento, com a associação do seu nome a ilícitos que jamais praticou em seus 26 anos de Ministério Público.

Ao que se sabe, tal apuração decorre da análise de atos da sua vida íntima, que devem ser respeitados, e não podem ser deturpados para algo que efetivamente não são.

Conforme certamente restará comprovado ao final da investigação, a sua atuação como promotor criminal é escorreita e sempre se pautou pela legalidade estrita.

Não se pode, numa sociedade que se diz protetora de direitos e garantias constitucionais de enorme relevância, dentre elas a ampla defesa e o contraditório, permitir-se um julgamento público precedente ao início da apuração pelos órgãos competentes, que deve ser conduzida com isenção, prudência e austeridade.”

Colaborou Lucas Thadeu, da Rede Amazônica Acre.

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Governo devolve mais de R$ 17,9 milhões a aposentados do Acre com descontos não autorizados do INSS

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23.813 segurados acreanos foram ressarcidos; acordo nacional já repassou R$ 2,74 bilhões a 4 milhões de brasileiros. Adesão ainda está aberta e é gratuita

Os depósitos são realizados diretamente na conta onde o beneficiário recebe o benefício previdenciário, corrigidos pela inflação (IPCA) e sem necessidade de processo judicial. Foto: ilustrativa

O Governo Federal já devolveu R$ 17,97 milhões a 23.813 aposentados e pensionistas do Acre que tiveram descontos associativos não autorizados em seus benefícios do INSS. No país, o acordo já beneficiou 4 milhões de brasileiros, com um total de R$ 2,74 bilhõesdevolvidos até esta semana.

O ressarcimento é feito diretamente na conta do beneficiário, com correção pelo IPCA, sem necessidade de processo judicial. Os valores referem-se a descontos realizados entre março de 2020 e março de 2025 por entidades que não comprovaram autorização formal.

Quem pode aderir:
  • Beneficiários que contestaram descontos e não receberam resposta em 15 dias úteis.

  • Quem obteve respostas irregulares, como assinaturas falsas ou gravações de áudio como “comprovação”.

  • Segurados com ações judiciais em andamento (é necessário desistir do processo para entrar no acordo).

O procedimento é gratuito, rápido e totalmente online, sem exigência de envio de documentos. Além do valor descontado, o INSS também pagará honorários advocatícios de 5% em ações individuais que forem encerradas para aderir ao acordo.

O governo reforça que os segurados verifiquem extratos e descontos recorrentes e busquem o ressarcimento caso identifiquem cobranças indevidas. O prazo para adesão segue aberto.

Critérios de elegibilidade
  • Descontos indevidos entre março de 2020 e março de 2025
  • Contestação sem resposta da entidade em 15 dias úteis
  • Respostas irregulares (assinaturas falsificadas, gravações como comprovante)
  • Ações judiciais em andamento (necessário desistir para aderir)
Processo de adesão
  • Gratuito e rápido
  • Sem envio de documentos
  • Honorários advocatícios: 5% para ações individuais encerradas
Recomendação oficial
  • Verificação: Segurados devem checar origem de descontos recorrentes

O acordo representa esforço do governo para resolver em massa uma questão que sobrecarregava a Justiça com milhares de ações individuais. No Acre, onde a população idosa depende fortemente dos benefícios previdenciários, o ressarcimento traz alívio financeiro significativo para milhares de famílias.

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Construção de casas populares no Acre tem novo atraso e entrega só em janeiro de 2026

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Governo rescindiu contratos com empreiteiras por descumprimento de prazos; obras da Cidade do Povo, em Rio Branco, são as mais afetadas

A Sehurb informou que, em razão da necessidade de recontratação das empresas, a entrega das unidades da Cidade do Povo deverá ocorrer apenas na segunda quinzena de janeiro de 2026, sem possibilidade de antecipação. Foto: captada 

A entrega de casas populares no Acre sofreu novos atrasos em 2025, e a previsão de conclusão das primeiras unidades, principalmente no bairro Cidade do Povo, em Rio Branco, só deve ocorrer na segunda quinzena de janeiro de 2026. A Secretaria Estadual de Habitação e Urbanismo (Sehurb) atribui o problema ao descumprimento contratual pelas empreiteirasresponsáveis, o que levou à rescisão dos contratos e à abertura de nova licitação.

O atraso acontece mesmo com recursos federais já liberados pelo Ministério das Cidades para a construção de 3.573 unidades habitacionais no estado, pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. Além de Rio Branco, o programa prevê moradias em Plácido de Castro (25), Feijó (25) e Tarauacá (50), além de 383 novas casas na Cidade do Povo com recursos do Pró-Moradia.

A Sehurb informou que o pagamento às construtoras foi feito conforme medição da Caixa, descartando atrasos financeiros como causa. Agora, a recontratação das empresas é necessária para garantir qualidade e segurança nas obras.

Enquanto isso, o cadastro de interessados segue aberto pelo Sistema de Habitação (Sishabi), plataforma digital que já registra cerca de 26.716 inscrições só em Rio Branco. A secretaria reforça que as inscrições são apenas online e visam transparência e acesso simplificado aos programas habitacionais.

O Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon) ainda não se posicionou sobre os atrasos. A situação expõe a dificuldade crônica na execução de obras públicas no estado, mesmo com verba federal garantida.

De acordo com a Secretaria Estadual de Habitação e Urbanismo (Sehurb), nenhuma das empresas contratadas conseguiu executar os serviços dentro dos prazos estabelecidos. Foto: captada 

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Saúde pública foi tornada refém do uso político de emenda parlamentar

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Até 2013, as emendas parlamentares representavam apenas 0,8% do orçamento do Ministério da Saúde. Hoje, esse índice saltou para 12%, um crescimento exponencial que desequilibra o planejamento nacional

Atendimento de paciente com Covid-19: saúde pública dependente de emenda parlamentar. Foto: Ingrid Anne/Semcom

O financiamento do SUS (Sistema Único de Saúde) vive um momento crítico de disputa política e orçamentária e as emendas parlamentares, que foram um mecanismo complementar de investimento, transformaram-se, na última década, em uma fatia gigantesca e decisiva do orçamento da saúde pública no Brasil.

Para avaliar como a dependência de emendas pode impactar no planejamento do SUS, conselheiras e conselheiros nacionais de saúde, juristas, economistas e especialistas se reuniram para o Seminário “Financiamento e impacto das emendas parlamentares no SUS”, realizado no dia 3 de dezembro, em Brasília, pela Comissão Intersetorial de Financiamento e Orçamento (Cofin/CNS).

Os participantes alertaram que a política de financiamento foi descontextualizada do planejamento sanitário, tornando-se refém de uma lógica de austeridade fiscal e de interesses políticos via emendas parlamentares. A discussão, longe de ser apenas contábil, refletiu sobre a disputa entre capital e trabalho em que o subfinanciamento atua como um mecanismo de fragilização do direito à vida.

Lenir Santos, especialista em direito sanitário e integrante da Cofin/CNS recordou que desde o lançamento da Declaração de Alma-Ata, em 1978, e a criação das Ações Integradas de Saúde (AIS), o Brasil luta para consolidar um orçamento condizente para as políticas públicas de saúde.

“A Constituição Federal de 1988 trouxe avanços, mas também frustrações. Originalmente, previa-se que 30% do orçamento da Seguridade Social fosse destinado à saúde, mas, na prática, recursos foram desviados para outras ações, como assistência social e educação, gerando crises de pagamento na rede contratada desde o início do sistema”, relembrou Lenir.

Pacientes em busca de atendimento em hospital de Manaus: longas filas e espera. Foto: Divulgação

Essa fragilidade histórica, segundo o especialista, foi agravada pela própria estrutura tributária brasileira, segundo o economista e consultor do CNS, Francisco Funcia. Ele destacou que a Constituição Federal de 1988, embora tenha descentralizado a execução das políticas públicas, manteve a arrecadação centralizada.

De tudo que se arrecada de impostos no Brasil, 69% são relativos aos tributos federais (ex.: Imposto de Renda), 25% são tributos estaduais (ex.:ICMS) e 6% são tributos municipais (ex.:IPTU). Após as transferências intergovernamentais, chegamos ainda em uma centralização, ou seja, mesmo após a União repassar parte da arrecadação para estados e municípios, 57% da receita disponível ainda está no âmbito da União, 25% nos estados e 18% nos municípios.

Essa disparidade cria uma asfixia financeira nas prefeituras, que dependem visceralmente das transferências constitucionais e voluntárias.  Para o economista, é neste vácuo de recursos que as emendas parlamentares ganharam força política: diante da escassez, prefeitos buscam parlamentares para garantir o funcionamento básico de seus sistemas locais, criando uma relação de dependência”, avaliou.

Os dados apresentados durante o Seminário revelam uma mudança drástica na composição do orçamento federal. Até 2013, as emendas parlamentares representavam apenas 0,8% do orçamento do Ministério da Saúde. Hoje, esse índice saltou para 12%, um crescimento exponencial que desequilibra o planejamento nacional.

A análise do período de 2014 a 2022 mostra que o orçamento geral da saúde cresceu 1,7 vezes, enquanto o valor das emendas aumentou 5,7 vezes. Em valores nominais, a execução de emendas no Ministério da Saúde saltou de R$15 bilhões em 2023 para quase R$25 bilhões em 2024, um crescimento de mais de 60% em apenas um ano.

O problema central, contudo, não é apenas o volume de recursos, mas a qualidade do gasto. As emendas parlamentares, especialmente as individuais, muitas vezes não dialogam com os instrumentos de gestão e planejamentos de saúde ou com as pactuações feitas nas Comissões Intergestores Tripartites (CIT), por exemplo. Elas atropelam o planejamento técnico, alocando verbas sem critérios epidemiológicos, o que resulta em ineficiência e desperdício.

Plenário da Câmara: políticos financiam a saúde pública com emendas. Foto: Kayo Magalhães/Agência Câmara

O SUS é desenhado para funcionar com base em planos municipais, estaduais e nacional, com critérios epidemiológicos e de necessidade. As emendas, contudo, muitas vezes ignoram essa lógica. Os recursos fluem para onde há aliados políticos, não necessariamente onde há mais doentes ou carência assistencial; os equipamentos são comprados sem previsão de equipe para operá-los, ou unidades são reformadas em locais sem prioridade sanitária. Dessa forma, o poder de decisão sobre onde investir sai do Ministério da Saúde (Executivo) e migra para o Congresso (Legislativo).

Além disso, a lógica da austeridade fiscal, consolidada pela Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos), retirou cerca de R$ 70 bilhões do SUS entre 2018 e 2022, transformando o piso constitucional da saúde em um teto de despesas e forçando uma competição predatória por recursos dentro do orçamento público. A nova realidade orçamentária trouxe também complexos desafios jurídicos. A Lei Complementar nº 141 foi um marco ao determinar critérios de rateio e fiscalização, mas a profusão de novas regras e emendas impositivas gerou um emaranhado legal.

A juíza Amanda Costa, auxiliar no Supremo Tribunal Federal (STF) do Ministro Flávio Dino, explica que o cenário atual exigiu a intervenção da corte através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854. “O Judiciário passou a tratar a questão como um “processo estrutural”, reconhecendo que o ajuste do sistema exige medidas graduais e testadas para garantir transparência e rastreabilidade do dinheiro público”, defendeu.

Ainda no conjunto de avanços de medidas estruturais previstas na ADPF 854, todas as transferências decorrentes de emendas de qualquer modalidade na área da saúde são acompanhadas previamente de um atestado de conformidade a ser dado pelo gestor federal do SUS. “Essa preocupação com a eficiência do gasto público, passa a constar expressamente em decisões do colegiado”, explica a juíza.

Mudança de Perfil

Um outro ponto de tensão recente entre os poderes envolve a destinação final das emendas, especialmente quando elas são usadas em pagamento de pessoal, por exemplo. Dácio Guedes, diretor do Fundo Nacional de Saúde (FNS) explica que uma mudança drástica ocorreu na destinação desse dinheiro. “Historicamente, emendas eram usadas para investimento (construção de unidades, compra de equipamentos). Hoje, cerca de 90% desses recursos são destinados a custeio (pagamento de despesas correntes), muitas vezes sem critérios técnicos claros”, afirma.

Historicamente, e por vedação constitucional, as emendas não poderiam ser usadas para despesas de custos recorrentes e pagamento de pessoal, pois estas configuram gastos contínuos incompatíveis com transferências pontuais. No entanto, o Tribunal de Contas da União (TCU) reformou recentemente seu entendimento, permitindo, com base em alteração em uma resolução do Congresso Nacional, que emendas coletivas (de bancada e comissão) financiem folhas de pagamento na saúde. Essa flexibilização preocupa especialistas, pois pode comprometer a sustentabilidade fiscal dos municípios a longo prazo, além de ferir a lógica de que emendas deveriam ter caráter estruturante.

Dinheiro de emendas é usado para pagar médicos, o que contraria finalidade do recurso político. Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Mas segundo Dácio, existe uma janela de oportunidade para os gestores e conselheiros de saúde que zelam pela correta aplicação e precisam analisar e validar os relatórios anuais de gestão. A exigência de contas bancárias específicas para cada emenda e a auditoria determinada pelo DenaSUS (Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde) sobre recursos sem identificação são passos importantes para recuperar o controle sobre o destino das verbas. O diretor do FNS lembra que gestores e conselheiros têm o dever de analisar e validar os relatórios anuais de gestão, garantindo que o dinheiro que chega via emendas seja aplicado corretamente.

O momento exige vigilância constante, pois, como destacou o assessor parlamentar Flávio Tonelli, é preciso debater o que foi naturalizado na política brasileira, mas que não é natural: a captura do orçamento público por interesses que não o bem comum. “A defesa do SUS passa, obrigatoriamente, por desatar o nó que transformou o financiamento da saúde em moeda de troca política”, destacou.

Para além das cifras e leis, o debate sobre o financiamento do SUS é, essencialmente, político e social. Maicon Nunes, conselheiro nacional de saúde representante do Movimento Negro Unificado (MNU), reforça que o desfinanciamento não é um descuido, mas um projeto político que atinge desproporcionalmente a população negra, que compõe a maioria dos usuários do sistema público. “Congelar investimentos em saúde significa, na prática, congelar o investimento na vida dessas pessoas”, declarou.

Ronald dos Santos, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde alertou que não se pode desvincular a luta pelo orçamento da disputa histórica entre capital e trabalho no Brasil. “O Conselho Nacional de Saúde tem se posicionado como uma trincheira de resistência contra esse desmonte, atuando não apenas no controle social, mas como um agente político na defesa da democracia”, defendeu.

A narrativa de que o SUS é ineficiente serve aos interesses de mercantilização da saúde, abrindo portas para a privatização e para a atuação predatória do mercado.  O desafio para os próximos anos, conforme apontado por outros participantes do Seminário, é mobilizar a sociedade para a 18ª Conferência Nacional de Saúde e pautar um financiamento justo, que não seja corroído pelos juros da dívida pública ou pelas restrições do novo arcabouço fiscal.

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