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‘Minha mãe tem síndrome de Down’
A síndrome de Down de Izabel foi descoberta somente quando ela tinha 35 anos. A idosa, que é a caçula de 19 filhos,

Desde o início do casamento, Izabel e José queriam ter filhos
Nas fotografias da colação de grau da atendente Cristinna Maria da Silva, o largo sorriso da mãe dela, a dona de casa Izabel Rodrigues, de 66 anos, se destaca.
A alegria da idosa demonstra o orgulho que ela sentiu ao ver a única filha concluir o ensino superior.
Junto delas e com um sorriso tímido, o pai de Cristinna, o aposentado José Ribeiro, de 78 anos, também demonstrou felicidade com a conquista da filha, que se formou em Administração.
A conclusão do ensino superior foi algo distante para os pais de Cristinna, que cresceram na região rural do pequeno município de Morrinhos (GO) — hoje a família vive na área urbana da cidade. Eles estudaram somente até as primeiras séries do ensino fundamental.
O diploma de Cristinna foi também uma conquista para a mãe dela. Izabel tem síndrome de Down e um dos principais desafios que enfrentou na vida foi provar para os parentes que seria capaz de criar a filha.
Muitos duvidavam que a mulher, que tinha amigos imaginários e parecia alheia a tudo, poderia cuidar de uma criança.
A síndrome de Down de Izabel foi descoberta somente quando ela tinha 35 anos. A idosa, que é a caçula de 19 filhos, passou parte da vida sendo considerada pelos familiares como alguém que vivia “no mundo da lua”. No passado, parentes e conhecidos não desconfiavam que ela pudesse ter uma alteração genética. Para eles, tratava-se do jeito dela.
Para provar que conseguiria criar a filha, Izabel foi uma mãe extremamente cuidadosa. “Sempre que eu me sujava, ela corria para me limpar. Mesmo que estivesse perto da lama, com as outras crianças sujas, eu sempre estava limpa”, diz Cristinna, hoje com 29 anos.
“Ela era a minha bonequinha. Cuidei muito bem dela. Ela era um xodó para mim”, conta Izabel, que é de poucas palavras, mas sempre está sorridente.
Hoje, quase 30 anos após a dona de casa ter se tornado mãe, os parentes ainda se surpreendem por ela ter conseguido criar a filha. “Eles ficam admirados por ela ter dado conta de cuidar de mim”, comenta Cristinna.
A síndrome de Down
Izabel nasceu por meio de uma parteira, que era responsável pelos nascimentos dos bebês da região rural de Morrinhos. Na infância, demorou mais que os outros irmãos para aprender a falar e a andar. “Percebiam que ela era mais lenta que os outros, mas achavam que não era nada. Pensavam que era preguiça dela”, diz Cristinna.
Desde pequena, a idosa tem dificuldades de compreensão. Logo nos primeiros anos da escola, os pais decidiram retirá-la de lá, porque ela tinha extrema dificuldade de aprendizado. Izabel sabe ler e escrever muito pouco.
Na adolescência e no início da vida adulta, os parentes notaram que Izabel tinha atitudes diferentes. “Por um período, a minha mãe trabalhou. Ela falava que ia ao banheiro, mas quando iam atrás dela, ela estava no pomar, brincando com amigos imaginários. Diziam que ela não era certa da cabeça”, conta Cristinna.
Aos 25 anos, Izabel começou a namorar com José Ribeiro. Eles são primos de segundo grau e moravam em regiões próximas. Com cerca de seis meses de namoro, ele pediu permissão para se casar com ela. “Alguns dos meus tios não queriam deixar a minha mãe se casar, porque falavam que ela não era muito certa. Mas a minha avó permitiu.”
Desde o início do casamento, Izabel e José queriam ter filhos. Dez anos depois, parentes do casal levaram a mulher ao médico, para descobrir o motivo de ela não conseguir, até então, engravidar. “Nessa consulta, o médico descobriu a síndrome de Down da minha mãe. Ele disse que ela nunca poderia ter filhos, porque pessoas assim são inférteis”, diz Cristinna.
A síndrome de Down é uma alteração genética caracterizada pela presença de três cromossomos 21 nas células do indivíduo. Aqueles que possuem a síndrome têm, ao todo, 47 cromossomos nas células, enquanto a maior parte da população tem 46.
No Brasil, estima-se que haja cerca de 300 mil pessoas com a trissomia do cromossomo 21, como também é conhecida a síndrome de Down. Em todo o mundo, estudos apontam que um a cada 700 mil bebês nascidos vivos possui a característica genética.

Casamento de Izabel e José – Reprodução Alex Duarte
Uma das características da síndrome é a infertilidade. Estudos apontam que metade das mulheres que possuem a alteração genética são inférteis. Entre os homens com a síndrome, a infertilidade chega a atingir 80% deles.
Apesar do prognóstico desanimador, Izabel conseguiu engravidar meses após descobrir a síndrome. “Foi uma grande felicidade descobrir que ela estava grávida”, comenta José.
Há considerável possibilidade de que o bebê de uma pessoa com síndrome de Down nasça com a mesma característica genética. Em casos de mãe e pai com a síndrome, as chances de a criança ter a alteração genética chegam a 80%.
No caso de Izabel e José, como somente ela possui a síndrome de Down, as chances de a criança ter a mesma característica eram de 50%. Apesar da possibilidade considerável, Cristinna nasceu sem nenhuma alteração genética.
Casos de filhos de pai ou mãe com síndrome de Down que nascem sem a alteração genética são considerados incomuns.
O nascimento da filha
Desde o início da gravidez, os parentes de Izabel tinham receio sobre a capacidade dela para cuidar de um bebê. Em razão disso, logo após o nascimento de Cristinna, uma irmã da dona de casa a auxiliou nos cuidados com a recém-nascida.
“Os meus tios não queriam deixar a minha mãe sozinha comigo e decidiram que alguém precisava acompanhá-la nos primeiros dias, depois que ela saísse do hospital. Essa minha tia, que já tinha filhos, ficou na minha casa durante o meu primeiro mês de vida. Depois ela foi embora, porque a minha mãe já tinha aprendido o que tinha que aprender”, relata Cristinna.
“Meu pai passava o dia trabalhando, então ficávamos eu e a minha mãe. Ela é muito determinada quando quer alguma coisa e sempre quis mostrar que poderia cuidar de mim. Ela teve muita capacidade para me criar”, declara.
Uma das grandes dificuldades enfrentadas pelas pessoas com síndrome de Down é a crença de que são incapazes. Apesar da deficiência intelectual, que pode se manifestar em diferentes níveis, especialistas orientam que é importante estimular o desenvolvimento dessas pessoas para que elas possam se tornar cada vez mais independentes.
“Hoje, a deficiência intelectual e as dificuldades de desenvolvimento das pessoas com síndrome de Down são condições acolhidas de forma melhor pela sociedade. Mas a gente percebe que muitas pessoas não querem que o indivíduo com síndrome de Down se desenvolva, porque têm a crença de que serão eternas crianças”, afirma a neuropsicóloga Karyny Ferro, que atua no Instituto Jô Clemente (antiga Apae de São Paulo).

Os pais e Cristinna quando era bebê
“A deficiência intelectual é uma questão genética. Mas existe uma questão social. É importante que as pessoas tratem o indivíduo com Down conforme a idade cronológica dele, para que culturalmente ele consiga lidar com a autoimagem, porque querendo ou não, é uma pessoa que está envelhecendo”, acrescenta.
Especialistas frisam que uma pessoa com síndrome de Down pode ser capaz de criar um filho. Em alguns casos, pode necessitar de maior apoio externo, mas é fundamental que não menosprezem a capacidade daquele indivíduo e estimulem a independência.
Questões referentes à autonomia e desenvolvimento de uma pessoa com síndrome de Down tornam-se ainda mais importantes atualmente. Isso porque a expectativa de vida deles, que em décadas atrás era de 35 anos, hoje corresponde a, aproximadamente, 63 anos.
Entre os pontos de desenvolvimento de pessoas com a síndrome de Down, o geneticista e pediatra Zan Mustacchi ressalta a importância de entender que esses indivíduos podem ter uma vida sexual comum. Ele afirma que é fundamental falar sobre sexualidade com eles.
“O problema é que a sociedade não assumiu esse tipo de abertura. Dizem que por eles terem dificuldades intelectuais, não podem ter uma vida sexual. Isso faz com que esse indivíduo seja despreparado e, consequentemente, possa até sofrer abusos. A sexualidade deles é comum, como qualquer outra”, pontua Mustacchi.
Especialistas afirmam que para que o indivíduo com síndrome de Down tenha uma vida produtiva e inclusiva em todos os aspectos, é preciso haver apoio dos familiares e de diferentes profissionais, como fonoaudiólogo e psicólogo.
Uma mãe extremamente zelosa
Diferente do que costuma ser orientado por especialistas, Izabel nunca teve nenhum tipo de acompanhamento em razão da síndrome de Down. “Ela nunca procurou ajuda ou quis algum acompanhamento, até porque a gente mora em uma cidade pequena. Ela diz que esse diagnóstico não mudou em nada a vida dela”, conta Cristinna.
A síndrome de Down não afetou a criação que recebeu da mãe, afirma Cristinna. “Ela sempre foi muito amorosa e cuidadosa. Muita gente me pergunta qual é a diferença em ter uma mãe com síndrome de Down, mas para mim isso nunca mudou nada.”
“Sempre cuidei muito bem da minha filha. Eu a levava e buscava na escola. Gostava muito de passear com ela”, diz Izabel.

Os pais e Cristinna na infância
Um dos poucos momentos em que Cristinna se viu com medo em relação à alteração genética da mãe foi durante a adolescência.
“Eu estava na sétima série. Estávamos estudando sobre cromossomos e uma professora explicou sobre a síndrome de Down. Na época, eu desconhecia sobre o assunto e disse que minha mãe tinha. Nisso, minha professora garantiu que a minha mãe não tinha, porque as pessoas com essa síndrome são inférteis.”
“Eu fiquei abalada, porque comecei a pensar que pudesse ser adotada. Procurei meu tio, que tinha me falado sobre a síndrome, e ele me mostrou fotos da minha mãe grávida. Até falei com um médico da cidade e ele também me disse que, apesar de ser incomum uma pessoa com síndrome de Down ter filhos, eu era filha da minha mãe”, relembra.
Os netos
Há alguns anos, Cristinna deixou a casa dos pais para morar com o marido. Hoje, ela é mãe de dois garotos, de seis e 10 anos, e está grávida de seis meses.
A atendente se recorda que o primeiro momento em que duvidou da capacidade da mãe, em razão da síndrome de Down, foi logo após o nascimento do primogênito. “Eu não deixei que ela desse banho no meu filho nos primeiros meses dele, porque fiquei pensando que ela não fosse capaz. Para que ela não ficasse magoada, também não deixei que a outra avó fizesse isso. Eu mesma dei os banhos nele”, diz.
Cristinna confessa que se arrependeu da atitude. “Eu fiquei pensando: a minha mãe conseguiu cuidar de mim e me deu banho sozinha. Por que não conseguiria fazer isso com meu filho? Então, quando tive meu segundo filho, o primeiro banho, fora do hospital, foi dado por ela. Foi uma forma de me redimir”, conta.
Atualmente, Izabel cuida dos netos durante o período da manhã, enquanto a filha trabalha. “Ela é uma avó muito carinhosa”, comenta Cristinna.
‘Fiz questão de dar esse orgulho para eles’
Izabel e José moram na mesma casa, em um conjunto habitacional de Morrinhos, há mais de 30 anos. Hoje, vivem com a aposentadoria do idoso, que é um salário mínimo, e com a renda de tapetes que fazem para vender. “O dinheiro deles é escasso, mas nunca passaram necessidade. Eu ajudo quando eles precisam de algo. Como a família deles é muito grande, sempre ajuda também”, conta Cristinna.
“Nós tentamos aposentar a minha mãe por invalidez, mas não conseguimos, porque a Justiça alega que o benefício só pode ser concedido se a renda familiar for inferior a 1/4 do salário mínimo por pessoa. Como ela é casada com o meu pai e eles têm o salário mínimo dele, o juiz entendeu que a renda dela é maior que 1/4”, diz Cristinna. Segundo ela, o caso segue na Justiça.

Foto tirada na colação de grau da Cristinna, em fevereiro deste ano (Foto: arquivo pessoal)
A preocupação de Cristinna com Izabel e José é constante. Ela conta que desde criança soube que teria que ter muito cuidado com eles. “Os meus tios sempre falaram que vim ao mundo para ajudar os meus pais.”
Ao relembrar tudo o que viveu com os pais até hoje, ela cita que um dos momentos mais importantes foi o dia da sua colação de grau, em fevereiro deste ano. Orgulhosos, Izabel e José posaram para diversas fotos ao lado da filha. O momento especial causou comoção em parentes ao ser compartilhado por Cristinna nas redes sociais.
“Uma prima, muito mais velha que eu, comentou que ninguém acreditava que meus pais dariam conta de cuidar de mim, muito menos de me formar. Ninguém nunca acreditou que eles fossem capazes. Mas fiz questão de dar esse orgulho para eles.”
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Governo devolve mais de R$ 17,9 milhões a aposentados do Acre com descontos não autorizados do INSS
23.813 segurados acreanos foram ressarcidos; acordo nacional já repassou R$ 2,74 bilhões a 4 milhões de brasileiros. Adesão ainda está aberta e é gratuita

Os depósitos são realizados diretamente na conta onde o beneficiário recebe o benefício previdenciário, corrigidos pela inflação (IPCA) e sem necessidade de processo judicial. Foto: ilustrativa
O Governo Federal já devolveu R$ 17,97 milhões a 23.813 aposentados e pensionistas do Acre que tiveram descontos associativos não autorizados em seus benefícios do INSS. No país, o acordo já beneficiou 4 milhões de brasileiros, com um total de R$ 2,74 bilhõesdevolvidos até esta semana.
O ressarcimento é feito diretamente na conta do beneficiário, com correção pelo IPCA, sem necessidade de processo judicial. Os valores referem-se a descontos realizados entre março de 2020 e março de 2025 por entidades que não comprovaram autorização formal.
Quem pode aderir:
-
Beneficiários que contestaram descontos e não receberam resposta em 15 dias úteis.
-
Quem obteve respostas irregulares, como assinaturas falsas ou gravações de áudio como “comprovação”.
-
Segurados com ações judiciais em andamento (é necessário desistir do processo para entrar no acordo).
O procedimento é gratuito, rápido e totalmente online, sem exigência de envio de documentos. Além do valor descontado, o INSS também pagará honorários advocatícios de 5% em ações individuais que forem encerradas para aderir ao acordo.
O governo reforça que os segurados verifiquem extratos e descontos recorrentes e busquem o ressarcimento caso identifiquem cobranças indevidas. O prazo para adesão segue aberto.
Critérios de elegibilidade
- Descontos indevidos entre março de 2020 e março de 2025
- Contestação sem resposta da entidade em 15 dias úteis
- Respostas irregulares (assinaturas falsificadas, gravações como comprovante)
- Ações judiciais em andamento (necessário desistir para aderir)
Processo de adesão
- Gratuito e rápido
- Sem envio de documentos
- Honorários advocatícios: 5% para ações individuais encerradas
Recomendação oficial
- Verificação: Segurados devem checar origem de descontos recorrentes
O acordo representa esforço do governo para resolver em massa uma questão que sobrecarregava a Justiça com milhares de ações individuais. No Acre, onde a população idosa depende fortemente dos benefícios previdenciários, o ressarcimento traz alívio financeiro significativo para milhares de famílias.
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Construção de casas populares no Acre tem novo atraso e entrega só em janeiro de 2026
Governo rescindiu contratos com empreiteiras por descumprimento de prazos; obras da Cidade do Povo, em Rio Branco, são as mais afetadas

A Sehurb informou que, em razão da necessidade de recontratação das empresas, a entrega das unidades da Cidade do Povo deverá ocorrer apenas na segunda quinzena de janeiro de 2026, sem possibilidade de antecipação. Foto: captada
A entrega de casas populares no Acre sofreu novos atrasos em 2025, e a previsão de conclusão das primeiras unidades, principalmente no bairro Cidade do Povo, em Rio Branco, só deve ocorrer na segunda quinzena de janeiro de 2026. A Secretaria Estadual de Habitação e Urbanismo (Sehurb) atribui o problema ao descumprimento contratual pelas empreiteirasresponsáveis, o que levou à rescisão dos contratos e à abertura de nova licitação.
O atraso acontece mesmo com recursos federais já liberados pelo Ministério das Cidades para a construção de 3.573 unidades habitacionais no estado, pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. Além de Rio Branco, o programa prevê moradias em Plácido de Castro (25), Feijó (25) e Tarauacá (50), além de 383 novas casas na Cidade do Povo com recursos do Pró-Moradia.
A Sehurb informou que o pagamento às construtoras foi feito conforme medição da Caixa, descartando atrasos financeiros como causa. Agora, a recontratação das empresas é necessária para garantir qualidade e segurança nas obras.
Enquanto isso, o cadastro de interessados segue aberto pelo Sistema de Habitação (Sishabi), plataforma digital que já registra cerca de 26.716 inscrições só em Rio Branco. A secretaria reforça que as inscrições são apenas online e visam transparência e acesso simplificado aos programas habitacionais.
O Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon) ainda não se posicionou sobre os atrasos. A situação expõe a dificuldade crônica na execução de obras públicas no estado, mesmo com verba federal garantida.

De acordo com a Secretaria Estadual de Habitação e Urbanismo (Sehurb), nenhuma das empresas contratadas conseguiu executar os serviços dentro dos prazos estabelecidos. Foto: captada
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Saúde pública foi tornada refém do uso político de emenda parlamentar
Até 2013, as emendas parlamentares representavam apenas 0,8% do orçamento do Ministério da Saúde. Hoje, esse índice saltou para 12%, um crescimento exponencial que desequilibra o planejamento nacional

Atendimento de paciente com Covid-19: saúde pública dependente de emenda parlamentar. Foto: Ingrid Anne/Semcom
O financiamento do SUS (Sistema Único de Saúde) vive um momento crítico de disputa política e orçamentária e as emendas parlamentares, que foram um mecanismo complementar de investimento, transformaram-se, na última década, em uma fatia gigantesca e decisiva do orçamento da saúde pública no Brasil.
Para avaliar como a dependência de emendas pode impactar no planejamento do SUS, conselheiras e conselheiros nacionais de saúde, juristas, economistas e especialistas se reuniram para o Seminário “Financiamento e impacto das emendas parlamentares no SUS”, realizado no dia 3 de dezembro, em Brasília, pela Comissão Intersetorial de Financiamento e Orçamento (Cofin/CNS).
Os participantes alertaram que a política de financiamento foi descontextualizada do planejamento sanitário, tornando-se refém de uma lógica de austeridade fiscal e de interesses políticos via emendas parlamentares. A discussão, longe de ser apenas contábil, refletiu sobre a disputa entre capital e trabalho em que o subfinanciamento atua como um mecanismo de fragilização do direito à vida.
Lenir Santos, especialista em direito sanitário e integrante da Cofin/CNS recordou que desde o lançamento da Declaração de Alma-Ata, em 1978, e a criação das Ações Integradas de Saúde (AIS), o Brasil luta para consolidar um orçamento condizente para as políticas públicas de saúde.
“A Constituição Federal de 1988 trouxe avanços, mas também frustrações. Originalmente, previa-se que 30% do orçamento da Seguridade Social fosse destinado à saúde, mas, na prática, recursos foram desviados para outras ações, como assistência social e educação, gerando crises de pagamento na rede contratada desde o início do sistema”, relembrou Lenir.

Pacientes em busca de atendimento em hospital de Manaus: longas filas e espera. Foto: Divulgação
Essa fragilidade histórica, segundo o especialista, foi agravada pela própria estrutura tributária brasileira, segundo o economista e consultor do CNS, Francisco Funcia. Ele destacou que a Constituição Federal de 1988, embora tenha descentralizado a execução das políticas públicas, manteve a arrecadação centralizada.
De tudo que se arrecada de impostos no Brasil, 69% são relativos aos tributos federais (ex.: Imposto de Renda), 25% são tributos estaduais (ex.:ICMS) e 6% são tributos municipais (ex.:IPTU). Após as transferências intergovernamentais, chegamos ainda em uma centralização, ou seja, mesmo após a União repassar parte da arrecadação para estados e municípios, 57% da receita disponível ainda está no âmbito da União, 25% nos estados e 18% nos municípios.
Essa disparidade cria uma asfixia financeira nas prefeituras, que dependem visceralmente das transferências constitucionais e voluntárias. Para o economista, é neste vácuo de recursos que as emendas parlamentares ganharam força política: diante da escassez, prefeitos buscam parlamentares para garantir o funcionamento básico de seus sistemas locais, criando uma relação de dependência”, avaliou.
Os dados apresentados durante o Seminário revelam uma mudança drástica na composição do orçamento federal. Até 2013, as emendas parlamentares representavam apenas 0,8% do orçamento do Ministério da Saúde. Hoje, esse índice saltou para 12%, um crescimento exponencial que desequilibra o planejamento nacional.
A análise do período de 2014 a 2022 mostra que o orçamento geral da saúde cresceu 1,7 vezes, enquanto o valor das emendas aumentou 5,7 vezes. Em valores nominais, a execução de emendas no Ministério da Saúde saltou de R$15 bilhões em 2023 para quase R$25 bilhões em 2024, um crescimento de mais de 60% em apenas um ano.
O problema central, contudo, não é apenas o volume de recursos, mas a qualidade do gasto. As emendas parlamentares, especialmente as individuais, muitas vezes não dialogam com os instrumentos de gestão e planejamentos de saúde ou com as pactuações feitas nas Comissões Intergestores Tripartites (CIT), por exemplo. Elas atropelam o planejamento técnico, alocando verbas sem critérios epidemiológicos, o que resulta em ineficiência e desperdício.

Plenário da Câmara: políticos financiam a saúde pública com emendas. Foto: Kayo Magalhães/Agência Câmara
O SUS é desenhado para funcionar com base em planos municipais, estaduais e nacional, com critérios epidemiológicos e de necessidade. As emendas, contudo, muitas vezes ignoram essa lógica. Os recursos fluem para onde há aliados políticos, não necessariamente onde há mais doentes ou carência assistencial; os equipamentos são comprados sem previsão de equipe para operá-los, ou unidades são reformadas em locais sem prioridade sanitária. Dessa forma, o poder de decisão sobre onde investir sai do Ministério da Saúde (Executivo) e migra para o Congresso (Legislativo).
Além disso, a lógica da austeridade fiscal, consolidada pela Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos), retirou cerca de R$ 70 bilhões do SUS entre 2018 e 2022, transformando o piso constitucional da saúde em um teto de despesas e forçando uma competição predatória por recursos dentro do orçamento público. A nova realidade orçamentária trouxe também complexos desafios jurídicos. A Lei Complementar nº 141 foi um marco ao determinar critérios de rateio e fiscalização, mas a profusão de novas regras e emendas impositivas gerou um emaranhado legal.
A juíza Amanda Costa, auxiliar no Supremo Tribunal Federal (STF) do Ministro Flávio Dino, explica que o cenário atual exigiu a intervenção da corte através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854. “O Judiciário passou a tratar a questão como um “processo estrutural”, reconhecendo que o ajuste do sistema exige medidas graduais e testadas para garantir transparência e rastreabilidade do dinheiro público”, defendeu.
Ainda no conjunto de avanços de medidas estruturais previstas na ADPF 854, todas as transferências decorrentes de emendas de qualquer modalidade na área da saúde são acompanhadas previamente de um atestado de conformidade a ser dado pelo gestor federal do SUS. “Essa preocupação com a eficiência do gasto público, passa a constar expressamente em decisões do colegiado”, explica a juíza.
Mudança de Perfil
Um outro ponto de tensão recente entre os poderes envolve a destinação final das emendas, especialmente quando elas são usadas em pagamento de pessoal, por exemplo. Dácio Guedes, diretor do Fundo Nacional de Saúde (FNS) explica que uma mudança drástica ocorreu na destinação desse dinheiro. “Historicamente, emendas eram usadas para investimento (construção de unidades, compra de equipamentos). Hoje, cerca de 90% desses recursos são destinados a custeio (pagamento de despesas correntes), muitas vezes sem critérios técnicos claros”, afirma.
Historicamente, e por vedação constitucional, as emendas não poderiam ser usadas para despesas de custos recorrentes e pagamento de pessoal, pois estas configuram gastos contínuos incompatíveis com transferências pontuais. No entanto, o Tribunal de Contas da União (TCU) reformou recentemente seu entendimento, permitindo, com base em alteração em uma resolução do Congresso Nacional, que emendas coletivas (de bancada e comissão) financiem folhas de pagamento na saúde. Essa flexibilização preocupa especialistas, pois pode comprometer a sustentabilidade fiscal dos municípios a longo prazo, além de ferir a lógica de que emendas deveriam ter caráter estruturante.

Dinheiro de emendas é usado para pagar médicos, o que contraria finalidade do recurso político. Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Mas segundo Dácio, existe uma janela de oportunidade para os gestores e conselheiros de saúde que zelam pela correta aplicação e precisam analisar e validar os relatórios anuais de gestão. A exigência de contas bancárias específicas para cada emenda e a auditoria determinada pelo DenaSUS (Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde) sobre recursos sem identificação são passos importantes para recuperar o controle sobre o destino das verbas. O diretor do FNS lembra que gestores e conselheiros têm o dever de analisar e validar os relatórios anuais de gestão, garantindo que o dinheiro que chega via emendas seja aplicado corretamente.
O momento exige vigilância constante, pois, como destacou o assessor parlamentar Flávio Tonelli, é preciso debater o que foi naturalizado na política brasileira, mas que não é natural: a captura do orçamento público por interesses que não o bem comum. “A defesa do SUS passa, obrigatoriamente, por desatar o nó que transformou o financiamento da saúde em moeda de troca política”, destacou.
Para além das cifras e leis, o debate sobre o financiamento do SUS é, essencialmente, político e social. Maicon Nunes, conselheiro nacional de saúde representante do Movimento Negro Unificado (MNU), reforça que o desfinanciamento não é um descuido, mas um projeto político que atinge desproporcionalmente a população negra, que compõe a maioria dos usuários do sistema público. “Congelar investimentos em saúde significa, na prática, congelar o investimento na vida dessas pessoas”, declarou.
Ronald dos Santos, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde alertou que não se pode desvincular a luta pelo orçamento da disputa histórica entre capital e trabalho no Brasil. “O Conselho Nacional de Saúde tem se posicionado como uma trincheira de resistência contra esse desmonte, atuando não apenas no controle social, mas como um agente político na defesa da democracia”, defendeu.
A narrativa de que o SUS é ineficiente serve aos interesses de mercantilização da saúde, abrindo portas para a privatização e para a atuação predatória do mercado. O desafio para os próximos anos, conforme apontado por outros participantes do Seminário, é mobilizar a sociedade para a 18ª Conferência Nacional de Saúde e pautar um financiamento justo, que não seja corroído pelos juros da dívida pública ou pelas restrições do novo arcabouço fiscal.

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