Conecte-se conosco

Brasil

O Poder da Arquitetura

Publicado

em

O Poder da Arquitetura
Duda Almeida

O Poder da Arquitetura

O que fica como patrimônio para a humanidade quando pensamos na Arquitetura ? Na maioria das vezes, são os grandes edifícios, testemunhos de uma era; monumentos, grandes mausoléus, igrejas, fóruns, teatros. Símbolos que transcendem os anos. Devemos analisar estes símbolos, entendendo através deles as mudanças de comportamento da sociedade, sejam políticas, sejam comportamentais; e as intenções de se perpetuar os impérios, através de edificações que marcam o espaço urbano com a ideia de transmitir e marcar o território de maneira definitiva, constantemente vezes bruta, através de gerações. Os monumentos narram a história dos núcleos urbanos: fazem parte das cidades e jamais são entendidos se desassociados delas.

São três as classes de monumentos, sendo que todos surgem sucessivamente ao longo do tempo: os monumentos intencionais, os monumentos históricos e os monumentos de antiguidade, tendo este último surgido na virada do século, com a sociedade moderna. Monumentos intencionais são aquele feitos para imortalizar um acontecimento; monumentos históricos e artísticos são aqueles que estão imbuídos de valor, por sua qualidade artística ou significado histórico.

Monumentos intencionais reforçam de certa maneira a identidade e um momento político de um povo, porque nos levam a questionar a própria existência de um império, ou seja, uma experiencia existencial, uma ligação intrínseca, tanto na preservação da memória coletiva quanto na funcionalidade contemporânea das cidades. Ambos os alcances desempenham papéis essenciais na construção da identidade urbana e no fortalecimento de uma determinada cultura local. As preferencias econômicas, religiosas e políticas ecoam uma intenção de controle do comportamento de uma sociedade, impondo um discurso dos sistemas dominantes.

Quando analisamos sob este aspecto o passado, entendemos que por vezes, a Arquitetura é manipulada; por vezes auxilia a manipulação.

A Arquitetura contribui para nos transpor para uma dimensão onde o homem é um ser abstrato e diluído em uma cultura de massa. Por isso, é tão interessante quando nos deparamos com os registros da vida cotidiana, suas ruelas, casas, cozinhas, becos e testemunhos de uma extensão existencial do homem, como por exemplo, em Pompéia. Podemos nos ater aos detalhes, à vida do cidadão comum, ao cotidiano e aos hábitos de uma população local, firmemente embasada pelos ofícios, pela cultura, pelo meio ambiente e pela distribuição de classes. Infelizmente, são poucos os registros urbanos e edifícios residenciais unifamiliares que chegaram até nós de maneira abrangente e completa.

Dentro da filosofia, o filósofo, escritor e professor Martin Heidegger aponta que o espaço constitui o homem, ou seja, não é um elemento externo, alheio à existência comum. Segundo sua filosofia, “entende-se que o homem está de um lado e o espaço do outro. O espaço, porém, não é algo que se opõe ao homem”. Ou seja, o homem não se entende no mundo sem que sua presença no espaço seja percebida ou sem que ele se entenda como parte do próprio espaço. Para se usar uma expressão em moda, o “senso de pertencimento”.

Assim sendo, não podemos deixar de lado o papel da Arquitetura como sendo testemunho de uma existência. A relação entre arquitetura e o ser humano é co-dependente, co-pertencente e co-construtiva; não há como separar o espaço em que se vive da própria existência humana. Entendendo esta relação, somos levados a pensar no legado da arquitetura: o que chega ate nós, estes monumentos, são testemunhos de uma existência, mas também são elementos impossíveis de serem desassociados dos interesses políticos e econômicos de uma classe de “favorecidos”: são os discursos de poder e quem está querendo ditar as regras e tomar as rédeas daquele determinado momento histórico, de acordo com as preferencias econômicas, religiosas, politicas, de forma a induzir um discurso estabelecido por sistemas dominantes.

Nem sempre é este o consenso. A Arquitetura, no sistema de artes do Idealismo Alemão, embora abrigue as demais artes, é a mais baixa na hierarquia porque teria menos condições para dizer por si o que ela pretende significar através da sua obra. Seria uma disciplina mais artística se pudesse se aproximar, por exemplo, da escultura, porque seria menos utilitária e mais contemplativa. É, portanto, segundo e estrutura que rege este sistema, “a mais bruta e volumosa das artes, mais simples e direta, que apresenta uma mensagem mais unívoca e clara, e estratégica para entender algo que tem norteado a produção e a valorização de um discurso de convencimento e de imposição de uma vontade”. (Kothe, 2016, p11)

Os ditadores sempre entenderam o poder da Arquitetura. A música e a Arquitetura foram especialmente visadas pelo regime nazista, que chegou a classificá-las como “ as duas rainhas entre as artes ”. O regime nazista trocou os preceitos da moderna Bauhaus pelo historicismo neoclássico, em uma tentativa de imposição tão radical que chegou a culminar com a chamada “teoria das ruinas” – segundo a qual seria necessário ordenar a destruição total de Paris, devido à inconformidade dos líderes nazistas com a aparente incapacidade dos arquitetos do regime de transformar Berlim em algo tão imperial e harmonioso como a capital da França. Stalin colocou no ostracismo o moderno construtivismo russo e impôs o realismo socialista; seus ministros chegaram a proibir a música de Beethoven pois não representava os ideais políticos do regime. Os nazistas e fascistas tinham a Antiguidade como ponto de referência. “Por isso construíram tantos templos com colunas, venerando os tempos em que as coisas eram como deveriam ser – o que se mostrou como pura invenção, claro, através da prova de verdades repaginadas milhares de anos depois” diz o Professor Vincent Hiribarren, da King’s College de Londres.

O Hotel Moskva, marco da era stalinista em Moscou e o Estádio de Nuremberg, projeto do Arquiteto nazista Albert Speer, planejados e construídos por dois dos maiores regimes ditatoriais da história, são exemplos de neoclassicismo em escalas monumentais, pensados para intimidar e transmitir uma mensagem política de superioridade e dominação.

No Vale dos Caídos, monumento erguido por Francisco Franco nos arredores de Madri, os ensejos delirantes do governo totalitário do generalíssimo são representados por uma obra mirabolante destinada a criar uma grandiosa basílica encavada em uma rocha para abrigar os restos mortais do ditador. É inevitável não se deixar levar pela melancolia e a tristeza de se imaginar quantas vidas de prisioneiros políticos foram perdidas ali, sob as piores condições de trabalho possíveis, para atender os desejos de imortalidade da mente doente de um líder criminoso.

Além do impacto em grande escala, no espaço urbano, a arquitetura induz também a grandes sensações no âmbito físico espacial da vida humana. Em relação ao poder, pode reforçar uma identidade política, representando tanto um poder intimidador quanto um poder transformador. Pode também reutilizar e ressignificar grandes símbolos do passado, que representaram a grandiosidade de grandes civilizações.

Os membros do Parlamento Britânico ocupam, desde 1840, o prédio da Câmara dos Comuns. Os representantes se reúnem em uma construção neogótica, projetada por Augustus Pugin, um profissional complexo e rebuscado, controverso. O Arquiteto carregou nos elementos e detalhes, passeando entre excessos decorativos – adornos, pinturas, texturas, mosaicos de piso e elementos vitorianos em profusão – o que certamente inspira um comportamento sério e introspectivo de quem trabalha por ali.

Vale ainda lembrar que a ideia de “direita” e “esquerda” vem da disposição das cadeiras na Assembleia Nacional de Paris, na França – País que cunhou o termo “Arquitetura da Revolução” como linguagem política da época da Revolução Francesa, baseada no uso da racionalidade e na forma pura nas edificações e nas cidades como ferramenta para gerenciamento das massas, de acordo com seus principais teóricos Boullée e Ledoux.Os revolucionários franceses pouco ousaram em termos de arquitetura: bastou recorrer ao estilo imperial romano, em uma versão mais rebuscada, pois supostamente representava os ideais da vida republicana.

O Castelo de Versalhes foi a inspiração para a construção, no final do século XIX, do famoso jardim de inverno de Munique e dos castelos de Neuschwanstein e de Linderhof, este último residência do “Rei Louco” Luis II da Baviera que pretendia viver sua vida como se estivesse em um filme; o Castelo reproduz em vários detalhes a arquitetura que o inspirou, utilizando o símbolo do Sol em vários elementos decorativos, indicando, portanto a importância arquitetônica do regime de absolutismo do Reis Francês Luis XIV; este castelo na Baviera serviu de inspiração para que Walt Disney desenhasse o castelo da Cinderela. Luis II tinha a intenção de construir mais castelos, na Baviera, um com inspiração bizantina e outro em estilo chinês – reconstruções inspiradas em grandes impérios.

No Brasil, o poder político da Arquitetura também é lembrado como forma de transmitir uma mensagem de projeto de expansão e prosperidade. A era Vargas, após a Revolução de 1930, tentou refletir nos espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro a dimensão do nacionalismo populista; expandiu a cidade em direção à baixada da Guanabara, abrindo a Avenida Brasil, criando espaço para permitir o florescimento de uma arquitetura monumental, cujo exemplo maior foi o Ministério da Fazenda, em estilo neoclássico, inaugurado em 1943.

Juscelino Kubitschek, presidente responsável pela criação da Capital Federal, criou um projeto oficial ambicioso, cuja principal vitrine, uma nova cidade, deveria representar um novo destino, forte, moderno, formidável e próspero, para toda uma nação. Fruto da genialidade de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, seus eixos, obras e a relação urbana com o poder transmitem desejos do passado, presente e futuro do País, sempre com uma refinada articulação, por vezes monumental, por vezes em escala bucólica. Os prédios modernistas, portanto, deveriam transmitir esta mensagem. O Brasil crescia rumo a um destino grande e inevitável.

Em uma escala menor, Daniele Pisani, Professor de História e Teoria da Arquitetura Contemporânea em Milão, estudioso da Arquitetura Brasileira moderna, apresenta, em seu livro “O Trianon: do MAM ao MASP: Arquitetura Politica em São Paulo” o estudo sobre um único lote, em cuja história se entrecruzam, como num roteiro teatral, não só figuras de alto poder econômico e político, como Ciccillo Matarazzo, Assis Chateaubriand, Nelson Rockefeller, Armando de Arruda Pereira, Jânio Quadros, Adhemar de Barros e Faria Lima, mas também arquitetos da maior importância, como Affonso Eduardo Reidy, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas, Lina Bo Bardi.

Atualmente, tanto o Museu do Futuro — fantástica edificação em forma de anel onde as janelas formam poemas na caligrafia árabe — quanto o Louvre de Abu Dhabi e as Torres Petronas, na Malásia, são reflexo da ambição de seus governantes em valorizar obras modernas como representação de seu poder, através da arquitetura totalitária, adotada por qualquer governante que quer impor sua vontade através de símbolos grandiosos de sua gestão.

Sim, a Arquitetura é a oratória do poder. Atua, muitas vezes, como protagonista para manter a ordem na sociedade. Atua como instrumento através de suas edificações para demonstrar onipotência e é responsável pela igualdade e desigualdade social, no sentido que pode tanto amplificar quanto amenizar as questões sociais através de seus resultados. É uma enorme responsabilidade e uma perigosa ferramenta. Mas também é uma arte concreta e pública, embora alguns críticos insistam em classificá-la como algo mais artístico e abstrato. Sendo assim, causa impacto em quem a vê e em quem a habita todos os dias. Na verdade, um prédio tem o poder de mudar o entorno, tornando uma cidade mais viva, mais interessante, mais atrativa – e tem o poder de representar em escalas grandiosas os regimes marcados pela violência e desigualdade.

The post O Poder da Arquitetura first appeared on GPS Brasília – Portal de Notícias do DF .

Fonte: Nacional

Comentários

Continue lendo
Publicidade

Brasil

Governo devolve mais de R$ 17,9 milhões a aposentados do Acre com descontos não autorizados do INSS

Publicado

em

23.813 segurados acreanos foram ressarcidos; acordo nacional já repassou R$ 2,74 bilhões a 4 milhões de brasileiros. Adesão ainda está aberta e é gratuita

Os depósitos são realizados diretamente na conta onde o beneficiário recebe o benefício previdenciário, corrigidos pela inflação (IPCA) e sem necessidade de processo judicial. Foto: ilustrativa

O Governo Federal já devolveu R$ 17,97 milhões a 23.813 aposentados e pensionistas do Acre que tiveram descontos associativos não autorizados em seus benefícios do INSS. No país, o acordo já beneficiou 4 milhões de brasileiros, com um total de R$ 2,74 bilhõesdevolvidos até esta semana.

O ressarcimento é feito diretamente na conta do beneficiário, com correção pelo IPCA, sem necessidade de processo judicial. Os valores referem-se a descontos realizados entre março de 2020 e março de 2025 por entidades que não comprovaram autorização formal.

Quem pode aderir:
  • Beneficiários que contestaram descontos e não receberam resposta em 15 dias úteis.

  • Quem obteve respostas irregulares, como assinaturas falsas ou gravações de áudio como “comprovação”.

  • Segurados com ações judiciais em andamento (é necessário desistir do processo para entrar no acordo).

O procedimento é gratuito, rápido e totalmente online, sem exigência de envio de documentos. Além do valor descontado, o INSS também pagará honorários advocatícios de 5% em ações individuais que forem encerradas para aderir ao acordo.

O governo reforça que os segurados verifiquem extratos e descontos recorrentes e busquem o ressarcimento caso identifiquem cobranças indevidas. O prazo para adesão segue aberto.

Critérios de elegibilidade
  • Descontos indevidos entre março de 2020 e março de 2025
  • Contestação sem resposta da entidade em 15 dias úteis
  • Respostas irregulares (assinaturas falsificadas, gravações como comprovante)
  • Ações judiciais em andamento (necessário desistir para aderir)
Processo de adesão
  • Gratuito e rápido
  • Sem envio de documentos
  • Honorários advocatícios: 5% para ações individuais encerradas
Recomendação oficial
  • Verificação: Segurados devem checar origem de descontos recorrentes

O acordo representa esforço do governo para resolver em massa uma questão que sobrecarregava a Justiça com milhares de ações individuais. No Acre, onde a população idosa depende fortemente dos benefícios previdenciários, o ressarcimento traz alívio financeiro significativo para milhares de famílias.

Comentários

Continue lendo

Brasil

Construção de casas populares no Acre tem novo atraso e entrega só em janeiro de 2026

Publicado

em

Governo rescindiu contratos com empreiteiras por descumprimento de prazos; obras da Cidade do Povo, em Rio Branco, são as mais afetadas

A Sehurb informou que, em razão da necessidade de recontratação das empresas, a entrega das unidades da Cidade do Povo deverá ocorrer apenas na segunda quinzena de janeiro de 2026, sem possibilidade de antecipação. Foto: captada 

A entrega de casas populares no Acre sofreu novos atrasos em 2025, e a previsão de conclusão das primeiras unidades, principalmente no bairro Cidade do Povo, em Rio Branco, só deve ocorrer na segunda quinzena de janeiro de 2026. A Secretaria Estadual de Habitação e Urbanismo (Sehurb) atribui o problema ao descumprimento contratual pelas empreiteirasresponsáveis, o que levou à rescisão dos contratos e à abertura de nova licitação.

O atraso acontece mesmo com recursos federais já liberados pelo Ministério das Cidades para a construção de 3.573 unidades habitacionais no estado, pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. Além de Rio Branco, o programa prevê moradias em Plácido de Castro (25), Feijó (25) e Tarauacá (50), além de 383 novas casas na Cidade do Povo com recursos do Pró-Moradia.

A Sehurb informou que o pagamento às construtoras foi feito conforme medição da Caixa, descartando atrasos financeiros como causa. Agora, a recontratação das empresas é necessária para garantir qualidade e segurança nas obras.

Enquanto isso, o cadastro de interessados segue aberto pelo Sistema de Habitação (Sishabi), plataforma digital que já registra cerca de 26.716 inscrições só em Rio Branco. A secretaria reforça que as inscrições são apenas online e visam transparência e acesso simplificado aos programas habitacionais.

O Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon) ainda não se posicionou sobre os atrasos. A situação expõe a dificuldade crônica na execução de obras públicas no estado, mesmo com verba federal garantida.

De acordo com a Secretaria Estadual de Habitação e Urbanismo (Sehurb), nenhuma das empresas contratadas conseguiu executar os serviços dentro dos prazos estabelecidos. Foto: captada 

Comentários

Continue lendo

Brasil

Saúde pública foi tornada refém do uso político de emenda parlamentar

Publicado

em

Até 2013, as emendas parlamentares representavam apenas 0,8% do orçamento do Ministério da Saúde. Hoje, esse índice saltou para 12%, um crescimento exponencial que desequilibra o planejamento nacional

Atendimento de paciente com Covid-19: saúde pública dependente de emenda parlamentar. Foto: Ingrid Anne/Semcom

O financiamento do SUS (Sistema Único de Saúde) vive um momento crítico de disputa política e orçamentária e as emendas parlamentares, que foram um mecanismo complementar de investimento, transformaram-se, na última década, em uma fatia gigantesca e decisiva do orçamento da saúde pública no Brasil.

Para avaliar como a dependência de emendas pode impactar no planejamento do SUS, conselheiras e conselheiros nacionais de saúde, juristas, economistas e especialistas se reuniram para o Seminário “Financiamento e impacto das emendas parlamentares no SUS”, realizado no dia 3 de dezembro, em Brasília, pela Comissão Intersetorial de Financiamento e Orçamento (Cofin/CNS).

Os participantes alertaram que a política de financiamento foi descontextualizada do planejamento sanitário, tornando-se refém de uma lógica de austeridade fiscal e de interesses políticos via emendas parlamentares. A discussão, longe de ser apenas contábil, refletiu sobre a disputa entre capital e trabalho em que o subfinanciamento atua como um mecanismo de fragilização do direito à vida.

Lenir Santos, especialista em direito sanitário e integrante da Cofin/CNS recordou que desde o lançamento da Declaração de Alma-Ata, em 1978, e a criação das Ações Integradas de Saúde (AIS), o Brasil luta para consolidar um orçamento condizente para as políticas públicas de saúde.

“A Constituição Federal de 1988 trouxe avanços, mas também frustrações. Originalmente, previa-se que 30% do orçamento da Seguridade Social fosse destinado à saúde, mas, na prática, recursos foram desviados para outras ações, como assistência social e educação, gerando crises de pagamento na rede contratada desde o início do sistema”, relembrou Lenir.

Pacientes em busca de atendimento em hospital de Manaus: longas filas e espera. Foto: Divulgação

Essa fragilidade histórica, segundo o especialista, foi agravada pela própria estrutura tributária brasileira, segundo o economista e consultor do CNS, Francisco Funcia. Ele destacou que a Constituição Federal de 1988, embora tenha descentralizado a execução das políticas públicas, manteve a arrecadação centralizada.

De tudo que se arrecada de impostos no Brasil, 69% são relativos aos tributos federais (ex.: Imposto de Renda), 25% são tributos estaduais (ex.:ICMS) e 6% são tributos municipais (ex.:IPTU). Após as transferências intergovernamentais, chegamos ainda em uma centralização, ou seja, mesmo após a União repassar parte da arrecadação para estados e municípios, 57% da receita disponível ainda está no âmbito da União, 25% nos estados e 18% nos municípios.

Essa disparidade cria uma asfixia financeira nas prefeituras, que dependem visceralmente das transferências constitucionais e voluntárias.  Para o economista, é neste vácuo de recursos que as emendas parlamentares ganharam força política: diante da escassez, prefeitos buscam parlamentares para garantir o funcionamento básico de seus sistemas locais, criando uma relação de dependência”, avaliou.

Os dados apresentados durante o Seminário revelam uma mudança drástica na composição do orçamento federal. Até 2013, as emendas parlamentares representavam apenas 0,8% do orçamento do Ministério da Saúde. Hoje, esse índice saltou para 12%, um crescimento exponencial que desequilibra o planejamento nacional.

A análise do período de 2014 a 2022 mostra que o orçamento geral da saúde cresceu 1,7 vezes, enquanto o valor das emendas aumentou 5,7 vezes. Em valores nominais, a execução de emendas no Ministério da Saúde saltou de R$15 bilhões em 2023 para quase R$25 bilhões em 2024, um crescimento de mais de 60% em apenas um ano.

O problema central, contudo, não é apenas o volume de recursos, mas a qualidade do gasto. As emendas parlamentares, especialmente as individuais, muitas vezes não dialogam com os instrumentos de gestão e planejamentos de saúde ou com as pactuações feitas nas Comissões Intergestores Tripartites (CIT), por exemplo. Elas atropelam o planejamento técnico, alocando verbas sem critérios epidemiológicos, o que resulta em ineficiência e desperdício.

Plenário da Câmara: políticos financiam a saúde pública com emendas. Foto: Kayo Magalhães/Agência Câmara

O SUS é desenhado para funcionar com base em planos municipais, estaduais e nacional, com critérios epidemiológicos e de necessidade. As emendas, contudo, muitas vezes ignoram essa lógica. Os recursos fluem para onde há aliados políticos, não necessariamente onde há mais doentes ou carência assistencial; os equipamentos são comprados sem previsão de equipe para operá-los, ou unidades são reformadas em locais sem prioridade sanitária. Dessa forma, o poder de decisão sobre onde investir sai do Ministério da Saúde (Executivo) e migra para o Congresso (Legislativo).

Além disso, a lógica da austeridade fiscal, consolidada pela Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos), retirou cerca de R$ 70 bilhões do SUS entre 2018 e 2022, transformando o piso constitucional da saúde em um teto de despesas e forçando uma competição predatória por recursos dentro do orçamento público. A nova realidade orçamentária trouxe também complexos desafios jurídicos. A Lei Complementar nº 141 foi um marco ao determinar critérios de rateio e fiscalização, mas a profusão de novas regras e emendas impositivas gerou um emaranhado legal.

A juíza Amanda Costa, auxiliar no Supremo Tribunal Federal (STF) do Ministro Flávio Dino, explica que o cenário atual exigiu a intervenção da corte através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854. “O Judiciário passou a tratar a questão como um “processo estrutural”, reconhecendo que o ajuste do sistema exige medidas graduais e testadas para garantir transparência e rastreabilidade do dinheiro público”, defendeu.

Ainda no conjunto de avanços de medidas estruturais previstas na ADPF 854, todas as transferências decorrentes de emendas de qualquer modalidade na área da saúde são acompanhadas previamente de um atestado de conformidade a ser dado pelo gestor federal do SUS. “Essa preocupação com a eficiência do gasto público, passa a constar expressamente em decisões do colegiado”, explica a juíza.

Mudança de Perfil

Um outro ponto de tensão recente entre os poderes envolve a destinação final das emendas, especialmente quando elas são usadas em pagamento de pessoal, por exemplo. Dácio Guedes, diretor do Fundo Nacional de Saúde (FNS) explica que uma mudança drástica ocorreu na destinação desse dinheiro. “Historicamente, emendas eram usadas para investimento (construção de unidades, compra de equipamentos). Hoje, cerca de 90% desses recursos são destinados a custeio (pagamento de despesas correntes), muitas vezes sem critérios técnicos claros”, afirma.

Historicamente, e por vedação constitucional, as emendas não poderiam ser usadas para despesas de custos recorrentes e pagamento de pessoal, pois estas configuram gastos contínuos incompatíveis com transferências pontuais. No entanto, o Tribunal de Contas da União (TCU) reformou recentemente seu entendimento, permitindo, com base em alteração em uma resolução do Congresso Nacional, que emendas coletivas (de bancada e comissão) financiem folhas de pagamento na saúde. Essa flexibilização preocupa especialistas, pois pode comprometer a sustentabilidade fiscal dos municípios a longo prazo, além de ferir a lógica de que emendas deveriam ter caráter estruturante.

Dinheiro de emendas é usado para pagar médicos, o que contraria finalidade do recurso político. Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Mas segundo Dácio, existe uma janela de oportunidade para os gestores e conselheiros de saúde que zelam pela correta aplicação e precisam analisar e validar os relatórios anuais de gestão. A exigência de contas bancárias específicas para cada emenda e a auditoria determinada pelo DenaSUS (Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde) sobre recursos sem identificação são passos importantes para recuperar o controle sobre o destino das verbas. O diretor do FNS lembra que gestores e conselheiros têm o dever de analisar e validar os relatórios anuais de gestão, garantindo que o dinheiro que chega via emendas seja aplicado corretamente.

O momento exige vigilância constante, pois, como destacou o assessor parlamentar Flávio Tonelli, é preciso debater o que foi naturalizado na política brasileira, mas que não é natural: a captura do orçamento público por interesses que não o bem comum. “A defesa do SUS passa, obrigatoriamente, por desatar o nó que transformou o financiamento da saúde em moeda de troca política”, destacou.

Para além das cifras e leis, o debate sobre o financiamento do SUS é, essencialmente, político e social. Maicon Nunes, conselheiro nacional de saúde representante do Movimento Negro Unificado (MNU), reforça que o desfinanciamento não é um descuido, mas um projeto político que atinge desproporcionalmente a população negra, que compõe a maioria dos usuários do sistema público. “Congelar investimentos em saúde significa, na prática, congelar o investimento na vida dessas pessoas”, declarou.

Ronald dos Santos, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde alertou que não se pode desvincular a luta pelo orçamento da disputa histórica entre capital e trabalho no Brasil. “O Conselho Nacional de Saúde tem se posicionado como uma trincheira de resistência contra esse desmonte, atuando não apenas no controle social, mas como um agente político na defesa da democracia”, defendeu.

A narrativa de que o SUS é ineficiente serve aos interesses de mercantilização da saúde, abrindo portas para a privatização e para a atuação predatória do mercado.  O desafio para os próximos anos, conforme apontado por outros participantes do Seminário, é mobilizar a sociedade para a 18ª Conferência Nacional de Saúde e pautar um financiamento justo, que não seja corroído pelos juros da dívida pública ou pelas restrições do novo arcabouço fiscal.

Comentários

Continue lendo