Brasil
‘O PPB não é viável para quem quer se estabelecer, é muito engessado’
Presidente da Associação de Jovens Empresários do Amazonas (AJA), a farmacêutica e empresária comercial Natasha Mayer avalia que o Processo Produtivo Básico (PPB) não é viável para quem quer se estabelecer e é “engessado”

Presidente da Associação de Jovens Empresários do Amazonas aponta as dificuldades para se montar, na ZFM, empreendimentos no campo da sustentabilidade. Foto: assessoria
Waldick Júnior/A Critica
Eleita presidente da Associação de Jovens Empresários do Amazonas (AJA), a farmacêutica e empresária comercial Natasha Mayer avalia que o Processo Produtivo Básico (PPB) não é viável para quem quer se estabelecer e é “engessado”. A sigla define o conjunto de etapas mínimas de fabricação exigidas para que produtos industrializados na região possam receber incentivos fiscais por estarem na Zona Franca de Manaus.
A empresária conta que fundou a primeira indústria de cosméticos orgânicos da região, mas passou sete anos com o negócio montado antes de falir enquanto aguardava uma licença. Ela entende que o Polo Industrial é essencial para o estado, mas defende maior investimento em turismo. “Letícia, uma cidade de 50 mil habitantes, tem mais turistas do que o Amazonas inteiro”. Confira a entrevista.
O que é a associação, quantos membros possuem e por qual motivo foi criada em 2013?
A Associação de Jovens Empresários é filiada à Confederação Nacional de Jovens Empresários. É uma associação nacional que tem suas filiações estaduais. Em 2013, ela chegou aqui no Amazonas. A primeira presidente foi a Ananda Carvalho, que hoje é diretora do SEBRAE.
Começou com aquela história de um grupo de empresários jovens que tinha essa vontade de crescer, de estimular o networking no Estado para poder fortalecer, principalmente entre os jovens, porque a gente sabe que tem um preconceito muito grande com o empresário jovem. Parece que ele é menos responsável só porque ele é jovem. E foi se fortalecendo ao longo dos anos, foi aumentando o número de membros, foi ganhando robustez.
Muitos membros que naquela época tinham 30 e poucos anos, hoje tem mais de 40. A gente brinca que é a velha guarda. E aí a gente já viu que o estatuto diz que jovem não se refere necessariamente à idade, mas principalmente ao espírito jovem hoje, que é o espírito empreendedor. A limitação de idade não é para membros, mas para a diretoria. Presidência só pode ter até no máximo 45 anos.
A Associação veio passando por processos, assim como tudo no Brasil, no mundo, teve a pandemia que também impactou as empresas, então chegou a diminuir um pouco a associação nesse período. Hoje a gente tem mais de 210 membros na associação e ela está em pleno crescimento. Temos membros de todas as áreas de negócios, desde um MEI até empresário que tem sociedade com banco de Boston.
Quais são os principais desafios de um jovem ou uma jovem empresária?
O primeiro é que quando te olham com cara de jovem, duvidam da tua capacidade. Isso é óbvio. Isso é a primeira coisa. “Nossa, mas é você é a dona?” Por ser jovem e mulher, é claro que eu passei várias vezes pela situação de “eu quero falar com o dono”. E aí eu digo, “pois não?”.

A gente vai sentir que a conta vai chegar também para o consumidor no final. Espero que no fim das contas, nessa avaliação final, como a Zona Franca vai ser beneficiada, que a gente consiga ter um equilíbrio nisso tudo. Foto: assessoria
E, ao meu ver, as duas coisas são necessárias. Tanto o jovem como o mais maduro, porque a gente também precisa da maturidade nos negócios. Aqui na empresa, por exemplo, eu junto várias idades. Eu faço questão de ter jovens terminando o ensino médio, começando a faculdade e pessoas que estão próximas da aposentadoria. E eu acho que essa troca é extremamente benéfica. Você tem a energia de quem está vindo com toda a propulsão com a maturidade de quem já tem experiência.
Temos visto o país apresentar números positivos no PIB. A pobreza e a extrema pobreza caíram a níveis históricos. Ao mesmo tempo, o dólar tem disparado e o Banco Central tem aumentado os juros, o que afeta a economia. Como a Associação vê esse cenário?
O cenário econômico não está tão favorável para o empresário. Está estrangulando. Isso é ruim porque acaba atrapalhando a empregabilidade. É mais complicado a gente conseguir aumentar a geração de empregos quando a gente começa a ser mais estrangulado por impostos e taxas. A conta vem. Então, se a gente conseguisse diminuir essa conta governamental para repassar para empregos, seria mais benéfico para o empresário e para a população.
Por várias vezes, a associação se reúne com políticos para discutir. Nesse momento, a gente tem algumas negociações sendo feitas para verificar ICMS e ISS. Porque, querendo ou não, quanto mais imposto a gente paga, menos emprego a gente consegue gerar.
Então, apesar da associação não ter partido político, ela sempre senta à mesa para conversar com políticos sobre como vai ser esse direcionamento de impostos e tentar fazer negociações para diminuir esse estrangulamento fiscal para o empresário para que a gente consiga aumentar a geração de empregos.
O Senado aprovou nesta semana a regulamentação da reforma tributária. Os efeitos são escalonados, o que nos faz pensar que serão mais sentidos pelos jovens empresários de hoje, lá na frente. Que avaliação a Associação faz do texto para esses jovens empresários?
A gente sabe que o governo é o nosso maior sócio. A maior fatia vai para o governo. E não tem como a gente pensar nisso sem entender que vai onerar e vai dificultar. A curto prazo talvez realmente não seja tão sentido, mas a longo prazo talvez sim… São possibilidades. O empresário vai ter que começar a ver opções que ele consiga arcar com essa conta toda.
Infelizmente, uma das possibilidades é talvez substituir empregos por máquinas, porque máquinas têm menos imposto. Eu acho que o governo também tem que achar uma forma de estruturar essa cadeia de impostos sem estrangular a geração de empregos, porque a conta não vai fechar.
As principais entidades do estado têm feito avaliações positivas sobre o texto aprovado, incluindo Fieam, CDL, Cieam. Isso contradiz com o que você coloca ou o mesmo texto abre espaço para as duas interpretações? Afinal, eles consideram mais a Zona Franca.
Eu não vi ainda como isso vai ser para a Zona Franca. Eu estava olhando principalmente na minha área, que é de serviços, que vai aumentar um pouco. Acho que talvez por isso, porque a associação tem poucos industriais. Na realidade, a grande maioria é serviços e comércio.
Lá na ponta, a gente vai sentir que a conta vai chegar também para o consumidor no final. Espero que no fim das contas, nessa avaliação final, como a Zona Franca vai ser beneficiada, que a gente consiga ter um equilíbrio nisso tudo.
Mas se eu falo de aumento de imposto, que lá na dianteira o consumidor vai ter que pagar mais por serviços e por comércio, é meio difícil entender um cálculo benéfico.
A Zona Franca é colocada como nosso principal motor econômico, mas o comércio e serviços estão extremamente ligados a ela. Tem essa interdependência entre todos. A reforma trouxe o debate do fim da Zona Franca no futuro. O comércio e os serviços se sustentariam sem ela?
Olha, como uma pessoa que já viajou para bastante lugar, que vivia do turismo, quando a gente olha pra cá a gente não tem como não se questionar sobre como que a gente não vive de turismo também. Não que a gente deva descartar a Zona Franca. A Zona Franca está aí, é sólida, é estruturada, é maravilhosa.
Mas tem prazo para acabar pela Constituição.
Tem prazo. E a gente tem um dos lugares mais icônicos do mundo, um dos nomes mais fortes do mundo, a Amazônia. Então, eu acho que já passou da hora da gente olhar pra Amazônia com outros olhares.

A sigla define o conjunto de etapas mínimas de fabricação exigidas para que produtos industrializados na região possam receber incentivos fiscais por estarem na Zona Franca de Manaus. Foto: assessoria
Eu particularmente venho dessa zona de comércio. Eu cheguei a montar uma indústria, que foi a primeira indústria de cosméticos orgânicos daqui, com tecnologia suficiente pra ser vendida na Europa. Eu passei sete anos com a indústria montada esperando sair uma licença e não saiu. Eu fui a falência esperando que essa licença saísse. Então, do lado daqui de empresário e com experiência, e já participei de muitas mesas de debate, é muito bonito falar da Amazônia sustentável, mas a gente não tem uma cadeia estrutural que fomente esse negócio de forma adequada.
Você chega lá e tem o hotel da Rede Decameron, que aqui não tem. Aqui não tem nenhum hotel hoje de rede internacional, de destaque, um hotel 5 estrelas de destaque. A gente não tem.
Quais serão as suas prioridades à frente da AJA, a partir de 2025?
Inovação, com certeza. Até porque não tem como a gente olhar para o desenvolvimento do mercado, seja lá em qual área for, sem a gente falar de desenvolvimento tecnológico e inovação e como colocar isso na nossa rotina. Isso já é uma realidade.
Com certeza, estruturar a casa, organizar o crescimento da associação, mas falar de inovação e desenvolvimento, e capacitação dessa nova geração de empresários, sim. Hoje a gente vê muita gente com vontade de ser empreendedor, tem a facilidade de abrir um CNPJ, mas a gente entende que, por mais que a gente tenha instituições que te dão suporte, como o Sebrae, como outras áreas, você também tem que estar num ambiente de pessoas que respirem esses mesmos objetivos.
Muitas vezes esse empreendedor está em uma família que ninguém é empresário. Está no meio de amigos que ninguém é empresário, e ele começa a ouvir que ele é louco. Muitas vezes é importante você estar andando com esses loucos pra poder entender e ver que você não é só mais um no meio do caminho, que tem pessoas que passam pelos mesmos desafios.

O cenário econômico não está tão favorável para o empresário. Está estrangulando. Isso é ruim porque acaba atrapalhando a empregabilidade. Foto: assessoria
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Governo devolve mais de R$ 17,9 milhões a aposentados do Acre com descontos não autorizados do INSS
23.813 segurados acreanos foram ressarcidos; acordo nacional já repassou R$ 2,74 bilhões a 4 milhões de brasileiros. Adesão ainda está aberta e é gratuita

Os depósitos são realizados diretamente na conta onde o beneficiário recebe o benefício previdenciário, corrigidos pela inflação (IPCA) e sem necessidade de processo judicial. Foto: ilustrativa
O Governo Federal já devolveu R$ 17,97 milhões a 23.813 aposentados e pensionistas do Acre que tiveram descontos associativos não autorizados em seus benefícios do INSS. No país, o acordo já beneficiou 4 milhões de brasileiros, com um total de R$ 2,74 bilhõesdevolvidos até esta semana.
O ressarcimento é feito diretamente na conta do beneficiário, com correção pelo IPCA, sem necessidade de processo judicial. Os valores referem-se a descontos realizados entre março de 2020 e março de 2025 por entidades que não comprovaram autorização formal.
Quem pode aderir:
-
Beneficiários que contestaram descontos e não receberam resposta em 15 dias úteis.
-
Quem obteve respostas irregulares, como assinaturas falsas ou gravações de áudio como “comprovação”.
-
Segurados com ações judiciais em andamento (é necessário desistir do processo para entrar no acordo).
O procedimento é gratuito, rápido e totalmente online, sem exigência de envio de documentos. Além do valor descontado, o INSS também pagará honorários advocatícios de 5% em ações individuais que forem encerradas para aderir ao acordo.
O governo reforça que os segurados verifiquem extratos e descontos recorrentes e busquem o ressarcimento caso identifiquem cobranças indevidas. O prazo para adesão segue aberto.
Critérios de elegibilidade
- Descontos indevidos entre março de 2020 e março de 2025
- Contestação sem resposta da entidade em 15 dias úteis
- Respostas irregulares (assinaturas falsificadas, gravações como comprovante)
- Ações judiciais em andamento (necessário desistir para aderir)
Processo de adesão
- Gratuito e rápido
- Sem envio de documentos
- Honorários advocatícios: 5% para ações individuais encerradas
Recomendação oficial
- Verificação: Segurados devem checar origem de descontos recorrentes
O acordo representa esforço do governo para resolver em massa uma questão que sobrecarregava a Justiça com milhares de ações individuais. No Acre, onde a população idosa depende fortemente dos benefícios previdenciários, o ressarcimento traz alívio financeiro significativo para milhares de famílias.
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Construção de casas populares no Acre tem novo atraso e entrega só em janeiro de 2026
Governo rescindiu contratos com empreiteiras por descumprimento de prazos; obras da Cidade do Povo, em Rio Branco, são as mais afetadas

A Sehurb informou que, em razão da necessidade de recontratação das empresas, a entrega das unidades da Cidade do Povo deverá ocorrer apenas na segunda quinzena de janeiro de 2026, sem possibilidade de antecipação. Foto: captada
A entrega de casas populares no Acre sofreu novos atrasos em 2025, e a previsão de conclusão das primeiras unidades, principalmente no bairro Cidade do Povo, em Rio Branco, só deve ocorrer na segunda quinzena de janeiro de 2026. A Secretaria Estadual de Habitação e Urbanismo (Sehurb) atribui o problema ao descumprimento contratual pelas empreiteirasresponsáveis, o que levou à rescisão dos contratos e à abertura de nova licitação.
O atraso acontece mesmo com recursos federais já liberados pelo Ministério das Cidades para a construção de 3.573 unidades habitacionais no estado, pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. Além de Rio Branco, o programa prevê moradias em Plácido de Castro (25), Feijó (25) e Tarauacá (50), além de 383 novas casas na Cidade do Povo com recursos do Pró-Moradia.
A Sehurb informou que o pagamento às construtoras foi feito conforme medição da Caixa, descartando atrasos financeiros como causa. Agora, a recontratação das empresas é necessária para garantir qualidade e segurança nas obras.
Enquanto isso, o cadastro de interessados segue aberto pelo Sistema de Habitação (Sishabi), plataforma digital que já registra cerca de 26.716 inscrições só em Rio Branco. A secretaria reforça que as inscrições são apenas online e visam transparência e acesso simplificado aos programas habitacionais.
O Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon) ainda não se posicionou sobre os atrasos. A situação expõe a dificuldade crônica na execução de obras públicas no estado, mesmo com verba federal garantida.

De acordo com a Secretaria Estadual de Habitação e Urbanismo (Sehurb), nenhuma das empresas contratadas conseguiu executar os serviços dentro dos prazos estabelecidos. Foto: captada
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Saúde pública foi tornada refém do uso político de emenda parlamentar
Até 2013, as emendas parlamentares representavam apenas 0,8% do orçamento do Ministério da Saúde. Hoje, esse índice saltou para 12%, um crescimento exponencial que desequilibra o planejamento nacional

Atendimento de paciente com Covid-19: saúde pública dependente de emenda parlamentar. Foto: Ingrid Anne/Semcom
O financiamento do SUS (Sistema Único de Saúde) vive um momento crítico de disputa política e orçamentária e as emendas parlamentares, que foram um mecanismo complementar de investimento, transformaram-se, na última década, em uma fatia gigantesca e decisiva do orçamento da saúde pública no Brasil.
Para avaliar como a dependência de emendas pode impactar no planejamento do SUS, conselheiras e conselheiros nacionais de saúde, juristas, economistas e especialistas se reuniram para o Seminário “Financiamento e impacto das emendas parlamentares no SUS”, realizado no dia 3 de dezembro, em Brasília, pela Comissão Intersetorial de Financiamento e Orçamento (Cofin/CNS).
Os participantes alertaram que a política de financiamento foi descontextualizada do planejamento sanitário, tornando-se refém de uma lógica de austeridade fiscal e de interesses políticos via emendas parlamentares. A discussão, longe de ser apenas contábil, refletiu sobre a disputa entre capital e trabalho em que o subfinanciamento atua como um mecanismo de fragilização do direito à vida.
Lenir Santos, especialista em direito sanitário e integrante da Cofin/CNS recordou que desde o lançamento da Declaração de Alma-Ata, em 1978, e a criação das Ações Integradas de Saúde (AIS), o Brasil luta para consolidar um orçamento condizente para as políticas públicas de saúde.
“A Constituição Federal de 1988 trouxe avanços, mas também frustrações. Originalmente, previa-se que 30% do orçamento da Seguridade Social fosse destinado à saúde, mas, na prática, recursos foram desviados para outras ações, como assistência social e educação, gerando crises de pagamento na rede contratada desde o início do sistema”, relembrou Lenir.

Pacientes em busca de atendimento em hospital de Manaus: longas filas e espera. Foto: Divulgação
Essa fragilidade histórica, segundo o especialista, foi agravada pela própria estrutura tributária brasileira, segundo o economista e consultor do CNS, Francisco Funcia. Ele destacou que a Constituição Federal de 1988, embora tenha descentralizado a execução das políticas públicas, manteve a arrecadação centralizada.
De tudo que se arrecada de impostos no Brasil, 69% são relativos aos tributos federais (ex.: Imposto de Renda), 25% são tributos estaduais (ex.:ICMS) e 6% são tributos municipais (ex.:IPTU). Após as transferências intergovernamentais, chegamos ainda em uma centralização, ou seja, mesmo após a União repassar parte da arrecadação para estados e municípios, 57% da receita disponível ainda está no âmbito da União, 25% nos estados e 18% nos municípios.
Essa disparidade cria uma asfixia financeira nas prefeituras, que dependem visceralmente das transferências constitucionais e voluntárias. Para o economista, é neste vácuo de recursos que as emendas parlamentares ganharam força política: diante da escassez, prefeitos buscam parlamentares para garantir o funcionamento básico de seus sistemas locais, criando uma relação de dependência”, avaliou.
Os dados apresentados durante o Seminário revelam uma mudança drástica na composição do orçamento federal. Até 2013, as emendas parlamentares representavam apenas 0,8% do orçamento do Ministério da Saúde. Hoje, esse índice saltou para 12%, um crescimento exponencial que desequilibra o planejamento nacional.
A análise do período de 2014 a 2022 mostra que o orçamento geral da saúde cresceu 1,7 vezes, enquanto o valor das emendas aumentou 5,7 vezes. Em valores nominais, a execução de emendas no Ministério da Saúde saltou de R$15 bilhões em 2023 para quase R$25 bilhões em 2024, um crescimento de mais de 60% em apenas um ano.
O problema central, contudo, não é apenas o volume de recursos, mas a qualidade do gasto. As emendas parlamentares, especialmente as individuais, muitas vezes não dialogam com os instrumentos de gestão e planejamentos de saúde ou com as pactuações feitas nas Comissões Intergestores Tripartites (CIT), por exemplo. Elas atropelam o planejamento técnico, alocando verbas sem critérios epidemiológicos, o que resulta em ineficiência e desperdício.

Plenário da Câmara: políticos financiam a saúde pública com emendas. Foto: Kayo Magalhães/Agência Câmara
O SUS é desenhado para funcionar com base em planos municipais, estaduais e nacional, com critérios epidemiológicos e de necessidade. As emendas, contudo, muitas vezes ignoram essa lógica. Os recursos fluem para onde há aliados políticos, não necessariamente onde há mais doentes ou carência assistencial; os equipamentos são comprados sem previsão de equipe para operá-los, ou unidades são reformadas em locais sem prioridade sanitária. Dessa forma, o poder de decisão sobre onde investir sai do Ministério da Saúde (Executivo) e migra para o Congresso (Legislativo).
Além disso, a lógica da austeridade fiscal, consolidada pela Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos), retirou cerca de R$ 70 bilhões do SUS entre 2018 e 2022, transformando o piso constitucional da saúde em um teto de despesas e forçando uma competição predatória por recursos dentro do orçamento público. A nova realidade orçamentária trouxe também complexos desafios jurídicos. A Lei Complementar nº 141 foi um marco ao determinar critérios de rateio e fiscalização, mas a profusão de novas regras e emendas impositivas gerou um emaranhado legal.
A juíza Amanda Costa, auxiliar no Supremo Tribunal Federal (STF) do Ministro Flávio Dino, explica que o cenário atual exigiu a intervenção da corte através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854. “O Judiciário passou a tratar a questão como um “processo estrutural”, reconhecendo que o ajuste do sistema exige medidas graduais e testadas para garantir transparência e rastreabilidade do dinheiro público”, defendeu.
Ainda no conjunto de avanços de medidas estruturais previstas na ADPF 854, todas as transferências decorrentes de emendas de qualquer modalidade na área da saúde são acompanhadas previamente de um atestado de conformidade a ser dado pelo gestor federal do SUS. “Essa preocupação com a eficiência do gasto público, passa a constar expressamente em decisões do colegiado”, explica a juíza.
Mudança de Perfil
Um outro ponto de tensão recente entre os poderes envolve a destinação final das emendas, especialmente quando elas são usadas em pagamento de pessoal, por exemplo. Dácio Guedes, diretor do Fundo Nacional de Saúde (FNS) explica que uma mudança drástica ocorreu na destinação desse dinheiro. “Historicamente, emendas eram usadas para investimento (construção de unidades, compra de equipamentos). Hoje, cerca de 90% desses recursos são destinados a custeio (pagamento de despesas correntes), muitas vezes sem critérios técnicos claros”, afirma.
Historicamente, e por vedação constitucional, as emendas não poderiam ser usadas para despesas de custos recorrentes e pagamento de pessoal, pois estas configuram gastos contínuos incompatíveis com transferências pontuais. No entanto, o Tribunal de Contas da União (TCU) reformou recentemente seu entendimento, permitindo, com base em alteração em uma resolução do Congresso Nacional, que emendas coletivas (de bancada e comissão) financiem folhas de pagamento na saúde. Essa flexibilização preocupa especialistas, pois pode comprometer a sustentabilidade fiscal dos municípios a longo prazo, além de ferir a lógica de que emendas deveriam ter caráter estruturante.

Dinheiro de emendas é usado para pagar médicos, o que contraria finalidade do recurso político. Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Mas segundo Dácio, existe uma janela de oportunidade para os gestores e conselheiros de saúde que zelam pela correta aplicação e precisam analisar e validar os relatórios anuais de gestão. A exigência de contas bancárias específicas para cada emenda e a auditoria determinada pelo DenaSUS (Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde) sobre recursos sem identificação são passos importantes para recuperar o controle sobre o destino das verbas. O diretor do FNS lembra que gestores e conselheiros têm o dever de analisar e validar os relatórios anuais de gestão, garantindo que o dinheiro que chega via emendas seja aplicado corretamente.
O momento exige vigilância constante, pois, como destacou o assessor parlamentar Flávio Tonelli, é preciso debater o que foi naturalizado na política brasileira, mas que não é natural: a captura do orçamento público por interesses que não o bem comum. “A defesa do SUS passa, obrigatoriamente, por desatar o nó que transformou o financiamento da saúde em moeda de troca política”, destacou.
Para além das cifras e leis, o debate sobre o financiamento do SUS é, essencialmente, político e social. Maicon Nunes, conselheiro nacional de saúde representante do Movimento Negro Unificado (MNU), reforça que o desfinanciamento não é um descuido, mas um projeto político que atinge desproporcionalmente a população negra, que compõe a maioria dos usuários do sistema público. “Congelar investimentos em saúde significa, na prática, congelar o investimento na vida dessas pessoas”, declarou.
Ronald dos Santos, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde alertou que não se pode desvincular a luta pelo orçamento da disputa histórica entre capital e trabalho no Brasil. “O Conselho Nacional de Saúde tem se posicionado como uma trincheira de resistência contra esse desmonte, atuando não apenas no controle social, mas como um agente político na defesa da democracia”, defendeu.
A narrativa de que o SUS é ineficiente serve aos interesses de mercantilização da saúde, abrindo portas para a privatização e para a atuação predatória do mercado. O desafio para os próximos anos, conforme apontado por outros participantes do Seminário, é mobilizar a sociedade para a 18ª Conferência Nacional de Saúde e pautar um financiamento justo, que não seja corroído pelos juros da dívida pública ou pelas restrições do novo arcabouço fiscal.

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