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Análise: Como Hamas continua sendo uma ameaça mesmo com cessar-fogo em Gaza
Conteúdo Exclusivo da CNN: Relatos indicam execuções nas ruas do território palestino e em áreas ainda controladas pelo grupo radical

Membros do Hamas durante demonstração militar na Cidade de Gaza em 2017 • Chris McGrath/Getty Images
Após a visita do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao Oriente Médio, quando o acordo de cessar-fogo entre Israel e o grupo palestino Hamas foi assinado, os obstáculos começam a ficar visíveis. O mais difícil deles pode ser, mais uma vez, o grupo.
Sob este novo acordo, o Hamas não representa mais uma ameaça para Israel. No entanto, continua sendo uma ameaça significativa para os palestinos — e para uma paz mais ampla.
Ao longo da última semana, surgiram relatos de áreas de Gaza ainda sob controle do grupo indicando que eles estão cercando palestinos que possam se opor ao seu governo e realizando execuções nas ruas.
Isso demonstra mais uma vez que os objetivos do Hamas não têm nada a ver com dignidade e justiça para os palestinos, mas apenas com a manutenção de seu controle absoluto sobre a Faixa de Gaza.
Não há dúvidas: enquanto o Hamas permanecer como único provedor de segurança para a população em Gaza, não há esperança para a reconstrução do território e nem para uma paz duradoura.
Novo mapa de Gaza
A primeira fase do acordo proposto por Trump para a Faixa de Gaza efetivamente divide o território em duas partes, com as forças israelenses controlando mais da metade do território e o Hamas controlando o restante.
Esta delimitação é marcada por uma linha amarela e, segundo o plano, permanecerá como status quo até que uma força de segurança internacional interina possa substituir as unidades israelenses.

Mapa mostra até onde militares de Israel devem recuar na Faixa de Gaza com primeira fase de acordo • Arte/CNN Brasil
Este novo mapa representa uma retirada massiva do Hamas — algo que o grupo terrorista nunca havia contemplado ao longo de um ano de difíceis negociações sobre cessar-fogo e libertação de reféns.
O resultado também atende a uma das principais exigências de Israel desde o início: garantir que o grupo nunca mais possa se reorganizar próximo ou em qualquer lugar perto das fronteiras de Israel.
Mas e quanto ao Hamas nas áreas acima da linha amarela?
O acordo de Trump determina que mesmo lá o grupo deve se desarmar e não pode permanecer no poder em nenhuma circunstância.
Esta semana, o presidente americano deixou claro que pretende manter essa posição, advertindo na quinta-feira (17) que se o Hamas continuar matando pessoas em Gaza, “Não teremos escolha a não ser entrar e matá-los.”
É aqui que o caminho adiante se torna extremamente difícil. Porque o Hamas não é apenas um grupo terrorista que se esconde para planejar ataques contra Israel; é o aparato político e de segurança enraizado em toda Gaza e passou as últimas duas décadas garantindo que não houvesse nenhum desafiante palestino ao seu reinado.
Ascenção do grupo
Em janeiro de 2006 os radicais demonstraram uma força surpreendente em uma eleição realizada na Faixa de Gaza.
O Hamas é um grupo terrorista comprometido com o assassinato de judeus e a destruição de Israel. Sua participação nas eleições parlamentares daquele ano — eleições que foram apoiadas pela administração do ex-presidente dos Estados Unidos, George W. Bush — ameaçava qualquer progresso em direção à paz.
“Acho que um erro que cometemos com o Hamas foi que realmente deveríamos ter exigido que eles se desarmassem se quisessem participar das eleições”, relembrou Condoleezza Rice, então secretária de Estado dos EUA, anos depois.
O Hamas acabou tomando violentamente o poder em todo o território palestino, torturando e matando seus opositores do partido rival Fatah, que havia se comprometido com um processo de paz com Israel.
Este violento golpe culminou em junho de 2007, quando o Hamas assumiu à força o controle de todo a faixa, situação que permanece até hoje — com o grupo controlando Gaza e o Fatah, por meio da Autoridade Palestina, controlando partes da Cisjordânia.

Homens das Brigadas Izz al-Din al-Qassam, ala militar do Hamas, durante marcha militar anti-Israel na cidade de Gaza • Yousef Masoud/SOPA Images/LightRocket via Getty Images
Agora sabemos que o Hamas não fez nada para melhorar a vida dos palestinos. Em vez disso, desperdiçou recursos para construir uma fortaleza subterrânea de túneis que se estende por centenas de quilômetros sob toda Gaza.
Treinou formações militares e construiu um arsenal para se preparar para uma futura guerra prolongada com Israel.
Esta é a guerra que o Hamas lançou em 7 de outubro de 2023, quando mais de três mil combatentes treinados invadiram Israel por múltiplas direções, matando mais de mil israelenses e fazendo mais de 250 reféns.
O sofrimento dos palestinos quando Israel respondeu, como um líder do Hamas recentemente disse a Jeremy Diamond da CNN, sempre fez parte do plano dos radicais.
Negociações com o Hamas
Durante os primeiros 16 meses da crise dos reféns na Faixa de Gaza, ajudei a liderar negociações entre Israel e Hamas, resultando em dois acordos de cessar-fogo.
O primeiro acordo ocorreu em novembro de 2023 — um compromisso para libertar todas as mulheres e crianças, incluindo avós e crianças pequenas.
O acordo resultou na libertação de mais de 100 reféns antes que o Hamas, no oitavo dia, informasse aos mediadores que não libertaria as mulheres mais jovens. Isso constituiu uma violação completa do acordo.
Nas negociações que se seguiram, o grupo manteve três demandas consistentes que dizia precisarem ser atendidas antes que todos os reféns pudessem ser libertados:
- As forças israelenses teriam que se retirar totalmente de Gaza;
- O Hamas permaneceria como a única força de segurança dentro de Gaza;
- Israel declararia uma trégua permanente, garantida pelos EUA.
Isso significava que Israel teria que aceitar o Hamas se reconstituindo e se reposicionando diretamente em suas fronteiras, algo que os israelenses nunca permitiram.
O grupo palestino nunca cedeu nestas exigências, usando os reféns como moeda de troca para garantir que permaneceria no poder e teria permissão para se reconstituir e eventualmente ameaçar novamente Israel e seus cidadãos — como seus líderes repetida e consistentemente prometeram fazer mesmo após 7 de outubro de 2023.
O Hamas rejeitou qualquer proposta de um perímetro israelense limitado em Gaza ou de forças de segurança provisórias, seja da Autoridade Palestina ou de colaboradores internacionais.
Diante deste impasse, os Estados Unidos, junto com Egito e Catar, desenvolveram um acordo em fases que visava interromper a guerra e trazer de volta o maior número possível de reféns, mesmo enquanto as conversas continuariam em relação aos arranjos de longo prazo para uma trégua permanente.
As três fases, em linhas gerais, eram as seguintes:
- Fase um: Retirada israelense limitada e cessar-fogo de 42 dias em troca da libertação de todas as mulheres, idosos e reféns feridos restantes;
- Fase dois: Negociação subsequente durante esses 42 dias para determinar as “condições” para uma retirada israelense completa e a libertação de todos os reféns restantes;
- Fase três: Troca de restos mortais e início de um programa plurianual de reconstrução para Gaza, apoiado por potências globais.
Esse acordo foi fechado em 15 de janeiro de 2023, e os reféns começaram a ser libertados três dias depois, fato que o então presidente Joe Biden comemorou em seu último discurso da presidência.
A primeira fase foi concluída em março, com 33 reféns libertados, mas as negociações para estabelecer as condições da Fase dois e a libertação dos reféns restantes nunca começaram.
O acordo então entrou em colapso, em parte porque o Hamas usou o cessar-fogo para visivelmente retomar o poder, emergindo de seus túneis em uniformes militares e grotescamente exibindo os reféns e até mesmo o caixão de uma criança israelense diante das multidões reunidas.
Para um cessar-fogo inicial que deveria estabelecer condições para uma trégua mais duradoura, tais demonstrações eliminaram qualquer esperança.
Israel, por sua vez, retomou suas operações militares ofensivas em Gaza, acreditando que o Hamas não estava preparado para aceitar condições que pudessem justificar uma retirada israelense completa de Gaza, conforme previsto na Fase dois deste acordo em três etapas.
Os seis meses seguintes testemunharam algumas das maiores operações militares israelenses de toda a guerra, junto com uma crise humanitária sem precedentes durante o período do verão.

Militantes palestinos do Hamas mostram reféns israelenses • Majdi Fathi/NurPhoto via Getty Images
O novo acordo em fases de Trump
O que é notável sobre o pacto atual é o extenso perímetro que permite às Forças de Defesa de Israel garantir metade de Gaza — incluindo todas as áreas fronteiriças por tempo indeterminado — mesmo com todos os reféns vivos agora fora do território palestino e retornados em segurança a Israel.
Tal acordo era impossível há um ano ou mesmo há 10 meses. O Hamas cedeu em praticamente todas as suas demandas centrais.
Isso se deve à crescente pressão e à mudança no equilíbrio de poder na região, incluindo as mortes dos líderes mais militantes do Hamas em Gaza, a derrota do Hezbollah no Líbano, o isolamento do Irã após a guerra de 12 dias, e o novo e promissor consenso que surgiu na região pedindo que o grupo cedesse o poder.
O Hamas agora libertou todos os reféns vivos e concedeu o controle israelense sobre grande parte de Gaza, junto com o entendimento de que uma força de segurança internacional acabará por se deslocar para essas áreas e substituir os israelenses.
Esta é a primeira vez em duas décadas que os radicais reconhecem até mesmo o princípio de uma força alternativa dentro de Gaza que não seja ele próprio.
Isso abre a oportunidade para uma futura Faixa de Gaza sem o grupo, mas apenas se essa força alternativa for estabelecida e começar a se posicionar nas próximas semanas e meses.
Até lá, a região provavelmente permanecerá dividida, com o Hamas recuperando o poder acima da linha amarela e as áreas abaixo largamente desabitadas até estarem preparadas para receber civis dispostos e capazes de se separar do grupo.
Podemos esperar que essa situação instável permaneça por meses, dado o tempo necessário para estabelecer uma força de segurança internacional.

Trump assina acordo de cessar fogo em Gaza • Suzanne Plunkett – Pool / Getty Images)
Lições da derrota do Estado Islâmico
Para romper o impasse, os Estados Unidos devem avançar agressivamente com o plano de 20 pontos, incluindo o estabelecimento da força de segurança interina, estruturas políticas e o plano de reconstrução de longo prazo.
É necessário garantir que as áreas fora do controle do Hamas recebam ampla assistência e abrigos temporários para incentivar as pessoas a se deslocarem para longe do grupo, um processo essencial para quebrar o domínio da organização sobre a população.
Já fizemos isso antes por meio de uma coalizão internacional para derrotar o EI (Estado Islâmico), separando cerca de 8 milhões de civis que viviam sob o controle e domínio medieval do grupo.
Isso foi realizado por meio do estabelecimento de áreas seguras, seguido pela abertura de corredores humanitários e incentivo aos civis para se moverem em direção a eles. É um trabalho árduo.
Trabalhando para as administrações Obama e Trump entre 2014 e 2018, liderei a coalizão global contra o EI e viajei pelo mundo para garantir compromissos militares e outros recursos. Cada capital estrangeira tem suas próprias leis e requisitos antes de enviar forças militares.
Cada força militar tem suas próprias estruturas legais, dificultando ainda mais a cooperação. Para assistência civil, alguns países insistem em trabalhar apenas através da Organização das Nações Unidas, enquanto outros se recusam a fazê-lo.
É complicado, mas possível, como provamos na campanha contra o Estado Islâmico. E no caso de Gaza, é essencial, porque a menos que exista uma força de segurança alternativa, as únicas forças armadas em Gaza serão Israel e Hamas, garantindo impasse e confrontos e arriscando a retomada do conflito.
Os Estados Unidos são a única potência global que pode liderar tal esforço, e Trump está agora em posição única para impulsionar o processo.
O exército americano enviou um pequeno número de tropas para Israel e Egito para ajudar a supervisionar a implementação do acordo de cessar-fogo e, posteriormente, viabilizar – em termos de logística, inteligência e comando – a força internacional que entraria em Gaza.
Desenvolvemos essa estrutura ao longo de 2024. O papel dos EUA é crítico, mas as tropas americanas não entrariam no território palestino.
Junto com uma nova estrutura de segurança, Catar, Turquia e Egito devem manter pressão sobre o Hamas para cumprir suas obrigações e se comprometer com a desmilitarização e o desarmamento, enquanto outros países fornecem recursos essenciais para pessoas que fogem para áreas mais seguras
Os países da região entendem melhor do que ninguém que, a menos que o Hamas seja removido do poder e fique impossibilitado de controlar a população palestina em Gaza, não há caminho para a paz ou para uma Gaza reabilitada.
O plano de Trump tem isso como seu elemento central, e agora começa o trabalho desafiador de transformar essa exigência em realidade no terreno onde realmente importa.
Fonte: CNN
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Governo devolve mais de R$ 17,9 milhões a aposentados do Acre com descontos não autorizados do INSS
23.813 segurados acreanos foram ressarcidos; acordo nacional já repassou R$ 2,74 bilhões a 4 milhões de brasileiros. Adesão ainda está aberta e é gratuita

Os depósitos são realizados diretamente na conta onde o beneficiário recebe o benefício previdenciário, corrigidos pela inflação (IPCA) e sem necessidade de processo judicial. Foto: ilustrativa
O Governo Federal já devolveu R$ 17,97 milhões a 23.813 aposentados e pensionistas do Acre que tiveram descontos associativos não autorizados em seus benefícios do INSS. No país, o acordo já beneficiou 4 milhões de brasileiros, com um total de R$ 2,74 bilhõesdevolvidos até esta semana.
O ressarcimento é feito diretamente na conta do beneficiário, com correção pelo IPCA, sem necessidade de processo judicial. Os valores referem-se a descontos realizados entre março de 2020 e março de 2025 por entidades que não comprovaram autorização formal.
Quem pode aderir:
-
Beneficiários que contestaram descontos e não receberam resposta em 15 dias úteis.
-
Quem obteve respostas irregulares, como assinaturas falsas ou gravações de áudio como “comprovação”.
-
Segurados com ações judiciais em andamento (é necessário desistir do processo para entrar no acordo).
O procedimento é gratuito, rápido e totalmente online, sem exigência de envio de documentos. Além do valor descontado, o INSS também pagará honorários advocatícios de 5% em ações individuais que forem encerradas para aderir ao acordo.
O governo reforça que os segurados verifiquem extratos e descontos recorrentes e busquem o ressarcimento caso identifiquem cobranças indevidas. O prazo para adesão segue aberto.
Critérios de elegibilidade
- Descontos indevidos entre março de 2020 e março de 2025
- Contestação sem resposta da entidade em 15 dias úteis
- Respostas irregulares (assinaturas falsificadas, gravações como comprovante)
- Ações judiciais em andamento (necessário desistir para aderir)
Processo de adesão
- Gratuito e rápido
- Sem envio de documentos
- Honorários advocatícios: 5% para ações individuais encerradas
Recomendação oficial
- Verificação: Segurados devem checar origem de descontos recorrentes
O acordo representa esforço do governo para resolver em massa uma questão que sobrecarregava a Justiça com milhares de ações individuais. No Acre, onde a população idosa depende fortemente dos benefícios previdenciários, o ressarcimento traz alívio financeiro significativo para milhares de famílias.
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Construção de casas populares no Acre tem novo atraso e entrega só em janeiro de 2026
Governo rescindiu contratos com empreiteiras por descumprimento de prazos; obras da Cidade do Povo, em Rio Branco, são as mais afetadas

A Sehurb informou que, em razão da necessidade de recontratação das empresas, a entrega das unidades da Cidade do Povo deverá ocorrer apenas na segunda quinzena de janeiro de 2026, sem possibilidade de antecipação. Foto: captada
A entrega de casas populares no Acre sofreu novos atrasos em 2025, e a previsão de conclusão das primeiras unidades, principalmente no bairro Cidade do Povo, em Rio Branco, só deve ocorrer na segunda quinzena de janeiro de 2026. A Secretaria Estadual de Habitação e Urbanismo (Sehurb) atribui o problema ao descumprimento contratual pelas empreiteirasresponsáveis, o que levou à rescisão dos contratos e à abertura de nova licitação.
O atraso acontece mesmo com recursos federais já liberados pelo Ministério das Cidades para a construção de 3.573 unidades habitacionais no estado, pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. Além de Rio Branco, o programa prevê moradias em Plácido de Castro (25), Feijó (25) e Tarauacá (50), além de 383 novas casas na Cidade do Povo com recursos do Pró-Moradia.
A Sehurb informou que o pagamento às construtoras foi feito conforme medição da Caixa, descartando atrasos financeiros como causa. Agora, a recontratação das empresas é necessária para garantir qualidade e segurança nas obras.
Enquanto isso, o cadastro de interessados segue aberto pelo Sistema de Habitação (Sishabi), plataforma digital que já registra cerca de 26.716 inscrições só em Rio Branco. A secretaria reforça que as inscrições são apenas online e visam transparência e acesso simplificado aos programas habitacionais.
O Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon) ainda não se posicionou sobre os atrasos. A situação expõe a dificuldade crônica na execução de obras públicas no estado, mesmo com verba federal garantida.

De acordo com a Secretaria Estadual de Habitação e Urbanismo (Sehurb), nenhuma das empresas contratadas conseguiu executar os serviços dentro dos prazos estabelecidos. Foto: captada
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Saúde pública foi tornada refém do uso político de emenda parlamentar
Até 2013, as emendas parlamentares representavam apenas 0,8% do orçamento do Ministério da Saúde. Hoje, esse índice saltou para 12%, um crescimento exponencial que desequilibra o planejamento nacional

Atendimento de paciente com Covid-19: saúde pública dependente de emenda parlamentar. Foto: Ingrid Anne/Semcom
O financiamento do SUS (Sistema Único de Saúde) vive um momento crítico de disputa política e orçamentária e as emendas parlamentares, que foram um mecanismo complementar de investimento, transformaram-se, na última década, em uma fatia gigantesca e decisiva do orçamento da saúde pública no Brasil.
Para avaliar como a dependência de emendas pode impactar no planejamento do SUS, conselheiras e conselheiros nacionais de saúde, juristas, economistas e especialistas se reuniram para o Seminário “Financiamento e impacto das emendas parlamentares no SUS”, realizado no dia 3 de dezembro, em Brasília, pela Comissão Intersetorial de Financiamento e Orçamento (Cofin/CNS).
Os participantes alertaram que a política de financiamento foi descontextualizada do planejamento sanitário, tornando-se refém de uma lógica de austeridade fiscal e de interesses políticos via emendas parlamentares. A discussão, longe de ser apenas contábil, refletiu sobre a disputa entre capital e trabalho em que o subfinanciamento atua como um mecanismo de fragilização do direito à vida.
Lenir Santos, especialista em direito sanitário e integrante da Cofin/CNS recordou que desde o lançamento da Declaração de Alma-Ata, em 1978, e a criação das Ações Integradas de Saúde (AIS), o Brasil luta para consolidar um orçamento condizente para as políticas públicas de saúde.
“A Constituição Federal de 1988 trouxe avanços, mas também frustrações. Originalmente, previa-se que 30% do orçamento da Seguridade Social fosse destinado à saúde, mas, na prática, recursos foram desviados para outras ações, como assistência social e educação, gerando crises de pagamento na rede contratada desde o início do sistema”, relembrou Lenir.

Pacientes em busca de atendimento em hospital de Manaus: longas filas e espera. Foto: Divulgação
Essa fragilidade histórica, segundo o especialista, foi agravada pela própria estrutura tributária brasileira, segundo o economista e consultor do CNS, Francisco Funcia. Ele destacou que a Constituição Federal de 1988, embora tenha descentralizado a execução das políticas públicas, manteve a arrecadação centralizada.
De tudo que se arrecada de impostos no Brasil, 69% são relativos aos tributos federais (ex.: Imposto de Renda), 25% são tributos estaduais (ex.:ICMS) e 6% são tributos municipais (ex.:IPTU). Após as transferências intergovernamentais, chegamos ainda em uma centralização, ou seja, mesmo após a União repassar parte da arrecadação para estados e municípios, 57% da receita disponível ainda está no âmbito da União, 25% nos estados e 18% nos municípios.
Essa disparidade cria uma asfixia financeira nas prefeituras, que dependem visceralmente das transferências constitucionais e voluntárias. Para o economista, é neste vácuo de recursos que as emendas parlamentares ganharam força política: diante da escassez, prefeitos buscam parlamentares para garantir o funcionamento básico de seus sistemas locais, criando uma relação de dependência”, avaliou.
Os dados apresentados durante o Seminário revelam uma mudança drástica na composição do orçamento federal. Até 2013, as emendas parlamentares representavam apenas 0,8% do orçamento do Ministério da Saúde. Hoje, esse índice saltou para 12%, um crescimento exponencial que desequilibra o planejamento nacional.
A análise do período de 2014 a 2022 mostra que o orçamento geral da saúde cresceu 1,7 vezes, enquanto o valor das emendas aumentou 5,7 vezes. Em valores nominais, a execução de emendas no Ministério da Saúde saltou de R$15 bilhões em 2023 para quase R$25 bilhões em 2024, um crescimento de mais de 60% em apenas um ano.
O problema central, contudo, não é apenas o volume de recursos, mas a qualidade do gasto. As emendas parlamentares, especialmente as individuais, muitas vezes não dialogam com os instrumentos de gestão e planejamentos de saúde ou com as pactuações feitas nas Comissões Intergestores Tripartites (CIT), por exemplo. Elas atropelam o planejamento técnico, alocando verbas sem critérios epidemiológicos, o que resulta em ineficiência e desperdício.

Plenário da Câmara: políticos financiam a saúde pública com emendas. Foto: Kayo Magalhães/Agência Câmara
O SUS é desenhado para funcionar com base em planos municipais, estaduais e nacional, com critérios epidemiológicos e de necessidade. As emendas, contudo, muitas vezes ignoram essa lógica. Os recursos fluem para onde há aliados políticos, não necessariamente onde há mais doentes ou carência assistencial; os equipamentos são comprados sem previsão de equipe para operá-los, ou unidades são reformadas em locais sem prioridade sanitária. Dessa forma, o poder de decisão sobre onde investir sai do Ministério da Saúde (Executivo) e migra para o Congresso (Legislativo).
Além disso, a lógica da austeridade fiscal, consolidada pela Emenda Constitucional 95 (Teto de Gastos), retirou cerca de R$ 70 bilhões do SUS entre 2018 e 2022, transformando o piso constitucional da saúde em um teto de despesas e forçando uma competição predatória por recursos dentro do orçamento público. A nova realidade orçamentária trouxe também complexos desafios jurídicos. A Lei Complementar nº 141 foi um marco ao determinar critérios de rateio e fiscalização, mas a profusão de novas regras e emendas impositivas gerou um emaranhado legal.
A juíza Amanda Costa, auxiliar no Supremo Tribunal Federal (STF) do Ministro Flávio Dino, explica que o cenário atual exigiu a intervenção da corte através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854. “O Judiciário passou a tratar a questão como um “processo estrutural”, reconhecendo que o ajuste do sistema exige medidas graduais e testadas para garantir transparência e rastreabilidade do dinheiro público”, defendeu.
Ainda no conjunto de avanços de medidas estruturais previstas na ADPF 854, todas as transferências decorrentes de emendas de qualquer modalidade na área da saúde são acompanhadas previamente de um atestado de conformidade a ser dado pelo gestor federal do SUS. “Essa preocupação com a eficiência do gasto público, passa a constar expressamente em decisões do colegiado”, explica a juíza.
Mudança de Perfil
Um outro ponto de tensão recente entre os poderes envolve a destinação final das emendas, especialmente quando elas são usadas em pagamento de pessoal, por exemplo. Dácio Guedes, diretor do Fundo Nacional de Saúde (FNS) explica que uma mudança drástica ocorreu na destinação desse dinheiro. “Historicamente, emendas eram usadas para investimento (construção de unidades, compra de equipamentos). Hoje, cerca de 90% desses recursos são destinados a custeio (pagamento de despesas correntes), muitas vezes sem critérios técnicos claros”, afirma.
Historicamente, e por vedação constitucional, as emendas não poderiam ser usadas para despesas de custos recorrentes e pagamento de pessoal, pois estas configuram gastos contínuos incompatíveis com transferências pontuais. No entanto, o Tribunal de Contas da União (TCU) reformou recentemente seu entendimento, permitindo, com base em alteração em uma resolução do Congresso Nacional, que emendas coletivas (de bancada e comissão) financiem folhas de pagamento na saúde. Essa flexibilização preocupa especialistas, pois pode comprometer a sustentabilidade fiscal dos municípios a longo prazo, além de ferir a lógica de que emendas deveriam ter caráter estruturante.

Dinheiro de emendas é usado para pagar médicos, o que contraria finalidade do recurso político. Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Mas segundo Dácio, existe uma janela de oportunidade para os gestores e conselheiros de saúde que zelam pela correta aplicação e precisam analisar e validar os relatórios anuais de gestão. A exigência de contas bancárias específicas para cada emenda e a auditoria determinada pelo DenaSUS (Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde) sobre recursos sem identificação são passos importantes para recuperar o controle sobre o destino das verbas. O diretor do FNS lembra que gestores e conselheiros têm o dever de analisar e validar os relatórios anuais de gestão, garantindo que o dinheiro que chega via emendas seja aplicado corretamente.
O momento exige vigilância constante, pois, como destacou o assessor parlamentar Flávio Tonelli, é preciso debater o que foi naturalizado na política brasileira, mas que não é natural: a captura do orçamento público por interesses que não o bem comum. “A defesa do SUS passa, obrigatoriamente, por desatar o nó que transformou o financiamento da saúde em moeda de troca política”, destacou.
Para além das cifras e leis, o debate sobre o financiamento do SUS é, essencialmente, político e social. Maicon Nunes, conselheiro nacional de saúde representante do Movimento Negro Unificado (MNU), reforça que o desfinanciamento não é um descuido, mas um projeto político que atinge desproporcionalmente a população negra, que compõe a maioria dos usuários do sistema público. “Congelar investimentos em saúde significa, na prática, congelar o investimento na vida dessas pessoas”, declarou.
Ronald dos Santos, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde alertou que não se pode desvincular a luta pelo orçamento da disputa histórica entre capital e trabalho no Brasil. “O Conselho Nacional de Saúde tem se posicionado como uma trincheira de resistência contra esse desmonte, atuando não apenas no controle social, mas como um agente político na defesa da democracia”, defendeu.
A narrativa de que o SUS é ineficiente serve aos interesses de mercantilização da saúde, abrindo portas para a privatização e para a atuação predatória do mercado. O desafio para os próximos anos, conforme apontado por outros participantes do Seminário, é mobilizar a sociedade para a 18ª Conferência Nacional de Saúde e pautar um financiamento justo, que não seja corroído pelos juros da dívida pública ou pelas restrições do novo arcabouço fiscal.

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