O mensalão não foi apenas um caso de corrupção, nem mesmo “apenas” o maior de todos da história

O Brasil é um país corrupto e todos sa­bem disso, mas a linguagem com que a corrupção é definida é trabalha­da de forma tão sutil que só um cientis­ta da linguagem consegue entender. Uma manobra recente que passa despercebida é como todos os casos de corrupção ago­ra são associados ao mensalão. Não para lembrar do mais catastrófico caso de cor­rupção (e não só de corrupção) do Brasil, mas justamente para esquecê-lo. Se tu­do é mensalão, nada é mensalão. Dilui-se tudo no mesmo palavreado, e ele se tor­na vazio.

O mensalão não foi caso de propina. Nem desvio de verba. Nem caixa 2. Nem po­demos chamar os mensaleiros de “la­drões” ou “corruptos” e encerrar o pro­blema. 0 mensalão foi tudo isso e muito mais. Não pode ser reduzido a uma de su­as características, como uma árvore não é uma folha.

O mensalão não foi apenas um caso de corrupção, nem mesmo “apenas” o maior de todos da história republicana brasilei­ra: o mensalão foi compra de votos pa­ra as normas do Executivo passarem sem oposição pelo Legislativo. Ou se­ja, com o mensalão, estaria ter­minada a separação entre pode­res, e Lula — sim, ele — pode­ria governar por decretos, como se faz nas protoditaduras muy amigas da Venezuela e Cuba (es­ta ainda menos disfarçada de de­mocracia). O mensalão foi ditato­rial, e não “apenas” um caso de corrupção. Mesmo que não hou­vesse “desvio” de dinheiro públi­co, 99% do problema persistiria.

Agora, setores “progressistas” (outro eufemismo para “petistas”) da mídia insistem na espar­rela de chamar o cartel do metrô em São Paulo de “trensalão”, ou chamar o escândalo de propina que ronda o deputado Eduardo Azeredo de “mensalão mineiro”.

Com qualquer caso de corrup­ção (e os há em toda parte e em todo partido) sendo associado ao mensalão, em vez de lembrarmo-nos de que o mensalão foi a primeira tentativa de golpe dita­torial no país desde 1964, acre­ditamos que ele é um caso como qualquer outro. Que todo mun­do já fez o seu “mensalão”, ainda que em menor escala.

Mesmo que investigações ainda incipientes revelem uma fal­catrua monstruosa, envolven­do somas de dinheiro mui­to maiores que o mensalão, ne­nhum caso de corrupção po­de ser associado ao que fize­ram os petistas, tão bem versa­dos em suas amizades com Hugo Chávez, Nicolás Maduro, Fidel Castro e até Muammar Kadafi e Mahmoud Ahmadinejad.

Propinas, favorecimentos a em­presários em contrato, trocas de favores, “desvio” (roubo) de verbas devem ser combatidos. Mas eles só revelam a ineficiência ób­via de deixar políticos gerindo nosso dinheiro e nossos gastos. Algo como dar uísque e as cha­ves do carro para um adolescen­te, como lembra P. J. 0’Rourke. Mas nada disso é comparável a diluir a distinção entre poderes e ter o poder total nas mãos por algumas migalhas dadas a polí­ticos fisiológicos, de identidade política incerta, eternamente na “base aliada”.

Flávio Morgenstern  é analista político do Instituto Millenium

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Publicado por
Alexandre Lima