Com Atual
As organizações criminosas passaram por uma transformação “sofisticada” para operar de forma mais “profissional” no mundo do crime. Estrutura ordenada, divisão de tarefas, recrutamento de servidores públicos formam o modus operandi de negócio do crime organizado. A amplitude do território de domínio e o anonimato dos líderes são alguns dos fatores dessa transformação, afirmam analistas em segurança pública.
“O primeiro aspecto que temos que destacar é que o crime organizado, o tráfico, se deu conta de que tinha de ser profissional, ele se profissionalizou”, diz Luiz Antonio Nascimento, sociólogo e professor da Ufam (Universidade Federal do Amazonas).
Para os especialistas consultados pela reportagem, o crime organizado no Brasil e na América Latina é formado por muitos grupos que atuam em alianças, uma espécie de fragmentação criminosa em que um grupo depende de outro para realizar “abastecimentos eficientes”. “Diante de operações das polícias brasileiras e internacionais, as organizações se reinventaram e criaram um esquema de proteção”, diz Nascimento.
Segundo o sociólogo, o esquema de proteção precisa corromper servidores públicos de áreas como a jurídica e a da política. “Para isso, você precisa corromper pessoas, você precisa corromper servidores públicos. Sempre foi assim, não é uma novidade”, diz.
O fato novo, segundo Luiz Antonio, é que as organizações criminosas começaram a apresentar os seus próprios candidatos para as esferas consideradas importantes da sociedade, como a da política e a da jurídica.
“As organizações começaram a financiar as suas próprias candidaturas nas grandes esferas da sociedade. Isso é preocupante. Você vê servidores de carreira envolvidos nos casos de tráfico, inclusive pessoas de ONGs (organizações não governamentais)”, diz.
Para o sociólogo, as organizações diversificaram os negócios ilegais e entraram em setores de segurança privada, armas, medicamentos, transporte, mineração, entre outros e para executá-los precisam de mais pessoas, especialmente para a “furar” burocracia pública.
“Antes, as organizações criminosas agenciavam pessoas de patente menores, como um tenente, e o que você vê hoje é que os agenciamentos chegaram aos comandantes. Outra coisa que percebemos é que a maioria das empresas privadas de segurança é administrada ou são propriedades de oficiais da polícia ou ligadas a área militar, e contratam ex-policiais para prestar os serviços”, diz Nascimento.
Segundo ele, as leis a favor da posse e do porte de armas abriu um leque de opções para as organizações criminosas, que antes não havia. “Você tem uma combinação de dois aspectos: de um lado o tráfico de drogas, do outro o tráfico de armas. E a Amazônia ocupa um lugar estratégico nesse universo. O crime financia a mineração ilegal, o gado e as invasões de terras. É um assunto complexo”, diz Nascimento.
“As organizações são tão sofisticadas que elas são descobertas, mas o negócio das organizações continua operando. Você prende os agentes, apreende embarcações, mas o crime continua”, complementa.
Para Israel Pinheiro, doutor em Antropologia Social, não existe um descontrole do Estado sobre as organizações criminosas, porque há meios para combater os crimes. “Temos policiais e delegacias especializadas em crimes, mas quando uma organização criminosa tem muitos recursos financeiros, é diversificada, maior vai ser o avanço delas. Não é algo que surge do nada, estão bem estruturadas”, diz Pinheiro.
Para o antropólogo, as políticas públicas para os diversos setores da sociedade podem ser uma forma de controlar a expansão do crime organizado e evitar a fragilidade dos sistemas judiciais e de segurança. “Há um conjunto de elementos que fortalecem as facções criminosas. Então o Estado deve combater e não pode falhar com a sociedade”.
Ricardo Castro, doutor em filosofia pela PUC (Pontíficia Universidade Católica) do Rio de Janeiro, especialista em violência masculina e de gênero, diz que essa relação entre crime e instituições públicas é histórica.
“Se analisarmos a História do Brasil, na construção da sociedade brasileira, vamos perceber que há uma relação entre crime organizado, a construção das sociedades e as instituições governamentais. Portanto, existe historicamente uma relação entre elas”, afirma.
“Somos uma sociedade fundada no que foi chamado de tráfico de escravos. Hoje, o crime organizado está estruturado de diversas formas como uma estrutura empresarial, com associados, com regras e hierarquias; e como estruturas governamentais, com criminosos que controlam áreas dentro da cidade, oferecendo serviços que as instâncias do governo não oferecem. Como definir o direito de propriedade, proteger os comércios?”, avalia o especialista.
Para entender essa relação, segundo Castro, é preciso recorrer ao filósofo francês Michel Foucault, que fala da corrupção das instituições como uma manifestação de ilegalidade tolerada, isto é, são toleradas pela sociedade como condição para que haja o funcionamento político e o econômico dentro da sociedade.
“A relação entre o crime organizado e as esferas de governança é um perigo para a democracia. Então, é necessário agir de forma contundente contra a corrupção no Estado e considerá-la como crime e não como ilegalidade tolerada. No contexto atual, um crime que questiona as práticas de governo e a confiança na política”, alerta.